terça-feira, setembro 30, 2008

O sentido trágico

Acho que foi assim que entrei dentro da sala de aulas, talvez tenha sido assim que olhei para eles sentados à minha frente, ou minutos depois, quando já tinha as mãos completamente sujas do pó do giz, senti nesses momentos aquilo que procuro ignorar a maior parte do tempo: que a minha vida só ganha uma dimensão verdadeira ao vestir a pele de professora de português. Não é que me sinta um peixe fora de água na vivência do meu quotidiano, nem pensar nisso; é apenas ter a noção de que a minha vocação cumpre-se ali, a ensinar.
Ando extraordinariamente cansada e o extraordinário tem aqui o sentido literal de "mais do que o normal", a verdade é que não podia deixar escapar esta oportunidade, mesmo que me obrigue a uma dedicação personalizada. Os materiais são todos pensados e criados por mim, do zero, uma vez que a bibliografia existente é insuficiente e, não raras vezes, pouco profícua. No sentido oposto, diria que as conquistas que vou fazendo; melhor, que eles vão fazendo, possibilitam-me uma sensação de vitória mais ardente e apaixonada.
Um barco acaba de deixar na água a marca da sua passagem, um risco indelével, pouco perceptível na distância. Se eu tivesse de descrever o teu efeito em mim (que não tenho, mas quero) diria que tu és o barco e eu sou a água. Tu deixas-me, ó asa-de-corvo, a herança indelével e eu, como resposta, permito que a espuma das minhas águas enfeitem o teu percurso, tornando-o mais belo.
É engraçado, com uma preponderância trágica, que eu não possa desenvolver a minha acção profissional no sentido da minha formação universitária; é curioso, também com uma preponderância trágica, que os professores sejam os indigentes das profissões liberais e é sobretudo admirável, com um sentido trágico total, que eu mantenha a convicção de outrora - e alguma esperança também - de que o meu lugar é dentro de uma sala, a ensinar e a aprender, a ser cada dia mais velha junto daqueles que serão, em mim, cada dia mais novos.

sexta-feira, setembro 26, 2008

Regresso aos bancos da escola

Estou nervosa. Estou ansiosa. Estou ansiosa e nervosa, tudo ao mesmo tempo. Sinto-me frenética, exausta e insegura. Quero muito regressar. Mas tenho medo do regresso. 17 caras. 17 rostos. 17 histórias. 17 nacionalidades e línguas também. Estarei à altura? Conseguirei eu ser a transmissora ideal da língua e da cultura do meu país?
Estou nervosa, frenética, ansiosa, exausta. Estou expectante também.
17 jovens. 17 maneiras de ser.17 pessoas. Eu sou apenas uma, mas espero que o amor ao ensino me faça ganhar asas e voar de encontro ao sucesso que será ouvi-los dizer, pela primeira vez: "Olá, professora!" Nesse momento, nesse exacto momento eu serei novamente a jovem idealista que saiu da faculdade um dia, com os livros debaixo do braço, acreditanto que as escolas e os seus alunos seriam a matéria dos seus dias vindouros...
Às 18.00 horas tem início o Curso Intensivo de Língua Portuguesa para alunos Erasmus da UTL. Eu sou uma das docentes contratadas.
P.S. Se o post tiver erros, perdoem-me, mas o meu corpo e o meu cérebro estão a mil e nem sei bem onde!

quarta-feira, setembro 24, 2008

Haverá mulheres mal-amadas?

Mariela Michelena é psicanalista em Madrid e acaba de lançar um livro com o sugestivo título Mujeres Malqueridas, que sustenta a teoria de existirem mulheres capazes em tudo menos na vivência do amor e que, por causa disso, sujeitam-se a amar homens que, em troca, as amam erradamente. Estes homens ou têm compromissos paralelos ou invocam a impossibilidade de se comprometerem. Ainda assim, elas assumem as relações e fidelizam-se nelas, na esperança, diz a autora, de que o cenário mude, um dia. Só que ele, em princípio, não mudará.
Consigo admitir que este tipo de livros, de orientação, possam cumprir objectivos sérios e ajudar muitas pessoas a definir novos caminhos; ao mesmo tempo, assustam-me as generalizações que se possam fazer, especialmente quando no seu enquadramento surge o tópico: mulher/mulheres. Haverá mulheres para todos os gostos, assim como homens. Haverá as que desejam ardentemente casar, as que fogem a isso, as que querem ser mães, as que se recusam, as que investem na carreira profissional, as que investem na família, todavia, sei que a sustentar estas escolhas está o comprazimento que os afectos lhes proporcionam: é que ninguém deseja o vazio que a falta de amor enseja.
Não posso deixar de admitir que as relações estão diferentes, o compromisso tem vindo a tomar rumos atípicos na sociedade actual. Parece-me que tudo ocorre sob o regime da casualidade e da momentaneidade. De repente, somos todos pessoas independentes, modernaças, que gostam de estar sozinhas. Somos uma cambada de assim-assins, que foge da dor como o diabo da cruz. Aliás, a dor passou a ser a peste negra da actualidade. Só por isso vale a pena evitar o amor. As pessoas resguardam-se nos seus territórios esvaziados, evitam expor-se com medo de revelar a sua fraqueza. Choram às escondidas. Ainda assim, é justo falar em mulheres mal-amadas? Haverá mulheres mal-amadas? Ou há apenas as que são e as que nunca foram nem nunca virão a sê-lo? E homens? Há ou não homens mal-amados? Homens incapazes de amar?
Tenho alguma dificuldade, confesso, em aceitar que haja pessoas a amar outras de forma errada. É-me mais confortável acreditar que o amor ou existe ou não existe. Simplifica. Simplifica-me. Além de que a expressão "mal-amada" ou "malquerida"associada a mulheres perturba-me; é que fica no ar a ideia de passividade, de aceitação relutante de sentimentos que as não favorecem. Nenhuma mulher saudável será capaz de prolongar uma situação semelhante. Aliás, a mulher é capaz de tomar a mais difícil das decisões e por mais que goste, quando reconhece que a história se esgotou, não volta atrás. Nem mesmo para inventariar os destroços que ficaram pelo caminho.
"Eu já não posso mais
Olhar nosso jardim
Lá não existem flores
Tudo morreu pra mim
Não posso mais
Olhar nosso jardim
Lá não existem flores
Tudo morreu pra mim...
Mas não faz mal
Depois que a chuva cair
Outro jardim um dia
Há de reflorir!"
Maria Bethânia, As Flores do Jardim da Nossa Casa

terça-feira, setembro 23, 2008

A lógica do amor

Na nossa primeira noite juntos, efectivamente juntos, não consegui dormir (foi no dia 23 de Setembro de 1996 e parece que foi ainda ontem). Fiquei a olhar-te só para garantir-me da tua presença, da tua respiração. Eras tão pequenino, menos as tuas mãos - enormes, fizeram-me imediatamente imaginar o teu futuro: NBA! Cantei para ti, se pode chamar-se aos sons que emitia cantar. A verdade é que a minha voz acalmava-te. Senti que estavas habituado a ela. Havia outra mãe no quarto e o seu bebé, estranhamente, também se acalmava ao ouvir-me cantar. Esse foi o único dia em que percebi que a minha voz continha o amor necessário para soar bonita e ser escutada por alguém.

Foste a pessoa que mais ansiei encontrar, conhecer. E ainda não me desiludiste uma única vez. Tens sido um ser humano excepcional; é com orgulho que digo a todos e a mais alguns que sou tua mãe. E dizer isso, é dizer amor, felicidade, medo, sinceridade, lealdade, verdade, loucura, gargalhadas ou cumplicidade.

A tua voz, o teu riso, o teu olhar trazem-me coisas boas, mesmo quando me deixas profundamente irritada porque sais para o carro sem a mochila da escola ou te esqueces de despejar o autoclismo. Credo, nisso, podias ser um pouco menos igual a mim.

Um abraço teu devolve-me a paz. Um beijo a certeza de que o nosso amor é de toda e para toda a vida. Uma lágrima a violenta descoberta de que a que tu choras é-me mais dolorosa do que a que eu mesma choro. O teu olhar traz-me a doce contemplação de uns olhos que me reconhecem por dentro. E o teu sorriso... meu deus... esse sorriso diz-me que a vida, depois de ti, é maior e mais completa. Quero que cresças dentro da lógica do meu amor. Este amor tão puro e tão teu, que escapa a todas as lógicas do mundo. Disse-to uma vez, não me cansarei de repeti-lo: save the last dance for me!

sexta-feira, setembro 19, 2008

Noite feminina

Gosto das noites que não me exigem quase nada. Em que as conversas me obrigam a que seja apenas eu, sem tiques de sedução ou reflexos de maturidade. Normalmente, essas noites acontecem por acaso, não foi o caso da última.
Combinámos jantar de mulheres, num restaurante de um amigo. Bebericámos vinho e dedilhámos conversas. Ainda que tivéssemos conversas tipicamente femininas, não falámos sobre saias, camisolas, malas ou sapatos; o que prova que a substância do feminino não se resume a isso. Acho que falámos sobretudo de homens - sim, não desenvolvemos qualquer protótipo criativo para conversas de mulheres, nem essa era a nossa intenção - todavia, mais importante do que o assunto, foi a forma como se falou dele. E nós a três falámos dos homens como os homens falam das mulheres: recorrendo à frieza dos nomes próprios. Não houve nem pénis nem vaginas sentados à mesa connosco. Muito menos houve coito interrompido ou sexo oral. O nosso jantar parecia os encontros das grandes amigas de Sexo e a Cidade. Estava lá a Samantha, a Charlotte e a Miranda. A Carrie não pôde comparecer, está, por esta altura, a viver o seu conto de amor duradoiro com o homem que ama, mas senti tanto a sua falta.
De qualquer forma, uma coisa é certa, percebi que apesar de sermos tão diferentes, nos gostos, nas atitudes, nos estilos; queremos todas viver de forma intensa, dizer o que há para dizer, fazer o que tem de ser feito, sem medo, porque, no final, temos a certeza de que mais vale sofrer as consequências da entrega do que sofrer as consequências de não nos entregarmos. E isto faz-me lembrar a música cantada pelo Milton Nascimento, Caçador de Mim. Escutem-na aqui.
Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu, caçador de mim
Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou-me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim
Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito à força, numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura
Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
O que me faz sentir
Eu, caçador de mim

quarta-feira, setembro 17, 2008

Nomes: o meu e o teu comigo

Só queria que tocassem todos os telefones e que a voz do outro lado fosse como todas as outras vozes, excepto numa coisa: no nome. Porque depois do teu nome, os outros que existem são murmúrios imperceptíveis contra a parede fresca do meu coração...

"Onde quer que o encontres
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo – é teu,

para sempre, o meu nome."

Maria do Rosário Pedreira, in Nenhum Nome Depois

terça-feira, setembro 16, 2008

Pela Marginal fora

As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "As Ondas"


Escolhi a marginal, hoje cedo, para fazer a travessia. O dia estava incrivelmente bonito. Talvez estivesse inexplicavelmente bonito. O mar era atravessado por braços de prata vindos do céu, que, múltiplos, se estendiam pela água, atribuíndo-lhe brilhos inenarráveis. O sol aquecia devagar a minha pele, filtrado pelo vidro do carro. O rádio estava sintonizado na Comercial, o Vasco Palmeirim, a Vanda Miranda e o Pedro Ribeiro têm uma energia que me comove, ainda que eu não os ouvisse, pois a minha atenção centrava-se somente na paisagem que me rodeava: a marginal tem um encanto muito próprio, que lhe é proporcionado pelo mar, que a limita.
À medida que avançava, fui reparando na vida que acontecia por ali. Reparei que, àquela hora, já havia pessoas no mar, dentro dos seus barcos. Não sei se à pesca, se em veraneio. Uns poucos aproveitavam para fazer a sua corrida matinal, ao vê-los , invejei-os. Invejei igualmente os pássaros que pareciam estar ali de propósito para tornar o quadro ainda mais especial.
Jamais poderia abandonar a paisagem que o mar me oferece. Mudar de país, sim; mudar de cidade, também, mas sempre, sempre com o mar por perto. Desconfio que é porque o mar tem a capacidade de parecer o mesmo em qualquer parte do mundo, levando-nos a criar a doce ilusão de familiaridade, que nos conforta a alma na distância.

segunda-feira, setembro 15, 2008

Os grandes, os pequenos e a Madonna

Eu sei que prometi falar do concerto da Madonna, mas não me apetece. Hoje não vou falar de nada, sequer. Há dias, como este, em que só quero passar despercebida. Não sinto vontade de provocar conversas de circunstância e muito menos de inventá-las para ocupar silêncios. Tenho os olhos inchados, ainda não parei de abrir a boca e o fim-de-semana esgotou-se depressa demais.
Não houve Like a Virgin, só Like a Prayer. Houve um "obrigada Lisboa" seguido de um "hablan español?" Houve igualmente a certeza de que ser alta é uma característica que me favorece em muitas ocasiões; se fosse baixa, o concerto ter-se-ia reduzido a cabeças de tamanhos diferentes que procuravam vislumbrar uma mulher de 50 anos que, pela forma como se mexe, parece ter 20 e que apetece convidar para uma sessão de sexo a três (sim, como não gosto de mulheres, entre mim e ela teria naturalmente de existir um homem). Houve uma poltrona de rainha, um carro e até uma carruagem de comboio a passar-nos diante dos olhos. Houve um trabalho de iluminação prodigioso e um trabalho gráfico como extensão do que era vivido em palco. Os bailarinos não falharam um único passo, a Madonna também não; ainda que os passos dela fossem os que fazia com os pés/ pernas/ mãos e com a voz - mesmo assim, não houve falhas. Ainda assisti a um pequeno motim. Assim que ela iniciou o espectáculo, houve pessoas (as tais mais baixas do que eu), não contentes com o facto de ouvirem apenas a voz da Diva, a porem-se às cavalitas dos generosos namorados, maridos, pais, irmãos, amigos. Mas isto só até começarem a ouvir vozes (também proferidas por pessoas baixas e, o mais certo, frustradas por não terem namorados, maridos, pais, irmãos ou amigos generosos) que reclamavam contra aqueles seres que, de repente, se agigantaram impedindo ainda mais o vislumbre de um ponto ao longe, segundo acreditavam, a Madonna. Julgo ainda ter ouvido uma série de palavrões e um empurrão violento a um casal encavalitado um no outro. Rapidamente se desfizeram as parcerias constituídas e todos voltaram a ter apenas o seu próprio tamanho. Que não foi suficiente para partilhar do talento sem tamanho da cantora. Não era fã. Não fiquei fã, contudo, se ela quisesse, pensava na tal sessão de sexo partilhada...

sexta-feira, setembro 12, 2008

Madonna e strip

Este fim-de-semana que agora começa vai ser intenso, ou espero eu que o seja. Gosto de sentir que a minha vida não termina quando arrumo a minha secretária e me dirijo para casa. O contrário também não me deixa particularmente feliz: perceber que aquela só começa quando saio do trabalho. Suponho que seja mais agradável acreditar que estou entre uma situação e outra.
Hoje tenho a despedida de solteira de uma "quase" amiga; e no que vai consistir esta despedida? Eu conto. Não será, com certeza, diferente de outras; mas entusiasma-me a ideia de assistir a um strip feminino. Isso mesmo, leram bem: vamos assistir a um strip feminino! Será a minha primeira vez... Não sei o que me espera, talvez nisso resida o meu entusiasmo e ansiedade. Sinceramente ( e digo-o baixinho, para que ninguém nos oiça), espero poder aprender uma série de coisas sobre a arte da sensualidade. Acredito que isso seja possível. E eu adoro aprender sobre tudo e nada. Sei que foi por isso que decidi ser professora. É lá, no ensino, que a apetência pelo saber é mais facilmente alimentada. Por falar nisso, estou mesmo com saudades das salas de aula. Caramba, nasci para ensinar...
No domingo vou ao concerto da Madonna. O Ricardo surpreendeu-me, à última hora, com um bilhete, que me ofereceu. Nestas alturas, como em outras, percebo que a minha vida não foi em vão. É uma sensação fantástica saber que tenho ao meu lado pessoas que gostam genuinamente de mim pelo que sou, seja qual for o meu número de soutien ou o número de buraquinhos de celulite que tenha no rabo.
Depois conto como foi a Madonna. Já o strip só partilharei com quem me apetecer. E eu sei bem quem me apetece.

quinta-feira, setembro 11, 2008

11 de Setembro

Estes dias de final de verão fazem-me pensar em lareiras, em torradas quentinhas e em chá de caramelo. Posso sentir o crepitar vagaroso da lenha queimada, o cheiro do pão a tostar e o vapor da água do chá, que deixa as paredes da cozinha húmidas.

O dia 11 de Setembro acordou tímido, sem saber se sorrir aos raios de sol ou sucumbir à força do cinzentismo das nuvens. Eu acordei tranquila, julgo até que a sorrir. Esta manhã funcionei como um antídoto contra as condições metereológicas, que normalmente definem o nosso estado de espírito; por vezes, mais do que julgamos possível.

Estes dias de final de verão lembram-me o cheiro dos livros por estrear e a ansiedade do regresso à escola. Posso sentir as folhas novas nas minhas mãos e rosto dos colegas, que vinham sempre tão diferentes das férias grandes.

O dia 11 de Setembro (não me apetece falar do outro 11 de Setembro) acordou murcho, como que a dizer que se sente cansado do calor, que deseja a chuva tal como eu desejo um abraço. Mas não um abraço qualquer, quero um abraço despido.

Estes dias de final de verão fazem-me lembrar o mar, as ondas revoltadas contra as enseadas das praias, engolindo a areia e não permitindo a toalha, os chinelos ou corpos deitados.

O dia 11 de Setembro acordou com uma vontade imensa de dizer: "A saudade, meus caros, é a linguagem da ausência." E sábado que não chega...

quarta-feira, setembro 10, 2008

Home alone

O Rodrigo ficou ontem em casa sozinho, pela primeira vez. O que tem isso de especial?, podem perguntar-se. Para mim é óbvia a importância de que se revestiu tal acontecimento. Os filhos devem ser educados para a independência, mas isso tem vindo a mudar substancialmente com os novos tempos. Eu, com a idade dele, já ia da escola para casa (e vice-versa) completamente sozinha, mais, aos 16 anos comecei a trabalhar, uma vez que percebi a dificuldade que os meus pais tinham em sustentar os meus vícios de adolescente, que se resumiam a um ou outro concerto ou a uma ou outra peça de roupa, nada de especial, julgo eu. Só que hoje, somando a legislação e as mentalidades sobre os direitos reconhecidos às crianças, se não prestarmos atenção, educamo-las tendencialmente para a tirania do "eu quero" e para a incapacidade de pensarem sozinhas sobre uma série de coisas.
A verdade é que o meu filho, como a maior parte dos seus amigos, não vai para a escola sem ser acompanhado e não sai da escola se não for exactamente nas mesmas condições. Este condicionalismo pode ter como consequência a dificuldade que ele possa vir a sentir em orientar-se no espaço ou em atravessar a estrada em segurança. O que eu quero dizer é que tem de haver uma política equilibrada na gestão da independência e da segurança/qualidade de vida que desejamos proporcionar aos nossos filhos; se não, teremos, no final do caminho, seres humanos imperfeitos.
A minha mãe estava aflitíssima porque o neto tinha ficado em casa sozinho - com o pequeno-almoço preprado e o almoço pronto a ser aquecido no microondas; ainda com dois filmes do videoclube disponíveis para se entreter, sem mencionar a internet e a bibicleta que o aguardava para dar umas voltinhas e conviver com as babes do bairro -, quando me obrigava a mim, na altura com 9, 10 anos, a comprar batatas na mercearia que ficava uns metros afastada de onde morávamos, à chuva e com os trovões a ribombarem aos meus ouvidos. Eu tremia durante todo o caminho (tenho pânico a trovoadas) mas fui e vim, apesar do medo. Todavia, isso já lá vai e agora ela não tem a função de educar, mas sim a de mimar e proteger, fazendo-me sentir, tantas vezes, como o monstro do Lago Ness, que obriga o "menino" a passar pelas mais estranhas provações: "Tu obriga-lo a fazer a cama e a lavar a loiça?! Coitadinho!" E se eu não estiver atenta, acaba a dizer-lhe: "Deixa estar a cama e a loiça que a avó vai lá tratar disso quando sair do trabalho."
Mesmo eu, estando consciente de que não quero formar um homem que não seja capaz de sobreviver por sua própria conta e risco, independentemente de ter a seu lado quem lhe trate das minudências do dia-a-dia, custa-me igualmente perceber que as exigências que lhe faço significam, mais do que tudo, que ele está a crescer, a tornar-se qualquer outra coisa, a fugir do colinho da mãe. Incomodam-me as portas que vão ficando fechadas atrás dele, demarcando claramente um território que até há pouco tempo também era o meu, mas não é mais. Não é mais... Incomodam-me as mãos que escondem as partes do corpo que antes desnudava sem qualquer preconceito. Incomodam-me porque é como se gritassem aos meus ouvidos: "MÃE, ACORDA, A REALIDADE AGORA É OUTRA." Há, todavia, uma porta que ainda se mantém aberta: a do diálogo. Não há nada de que não possamos falar. Bem, pelo menos, por enquanto...

P.S. Os danos do primeiro dia sozinho não foram assim tão desastrosos: fechou a porta de casa e deixou as chaves lá dentro. Resultado? O dia passado em casa não foi bem passado em casa, foi mais na rua. Tive de sair de uma reunião mais cedo para ir resolver o problema. Tirando isso, e as roupas espalhadas pelo chão da cozinha e do quarto, a loiça estava lavada.

terça-feira, setembro 09, 2008

Texto simples

Sabem como gosto de saborear a vida? Aos gomos, um de cada vez, para sentir na minha boca o gosto de cada momento vivido. Agora, é importante ter a noção de que se um gomo fica pela metade, arrumado a um canto durante anos a fio, e por qualquer razão, alguém se lembra de voltar a provar daquele gomo, ele não se encontrará fresco, nem proporcionará as mesmas sensações de outrora.
É fácil perceber, julgo, que as histórias de amor têm "aquele" momento para serem vividas; não faz sentido querer resgatar a frescura de outros tempos quando sabemos que o tempo não se senta à ombreira da porta a ver-nos passar por ele.
Para mim, é impossível voltar a ser o que fui há anos atrás. Hoje, sou uma outra, com a noção clara do que deseja e ainda mais clara daquilo que não quer para si. E eu não quero comer gomos da minha própria vida, ressequidos com a passagem dos dias. Ou ter acesso a migalhas que alguém deixa pelo caminho. Muito menos quero metades de homens entregues ao que não são e ao que nunca virão a ser.
Eu quero o simples, se o simples não for complicado de ter.

segunda-feira, setembro 08, 2008

Viagens na minha mente

Adormeci devagar; não tinha pressa: consegui transformar os segundos em minutos, os minutos em horas e as horas em eternidade. Adormeci apenas quando o sono se tornou impossível de adiar. Na minha cabeça, como num sonho, havia conversas desmedidas, conversas que começavam com um: " Sou loira, de olhos castanho-esverdeados (...)" e terminavam com: "E sou frágil, quebro com o vento ou de encontro ao vento." Assim que a palavra FRÁGIL ecoou pelo espaço, houve silêncios retraídos e o pressuposto de que a fragilidade é assustadora. Mas não é. A fragilidade é a força dos convictos, dos que acreditam que ao estenderem a mão, as mãos, vão sentir mais facilmente a brisa da vida. Na minha cabeça, as vozes escutavam-se mutuamente, mais do que isso, as vozes procuravam aprender uma com a outra: "São Tomé, Chile e Ásia" "Talvez Brasil, África, Antárctida"; "Bife com arroz de ervilhas, nunca queijo, nem frutos secos (talvez apenas amendoins)"; "Peixe, definitivamente, nunca iscas nem ovos escalfados com ervilhas". E como dentro de um barco que ondula ao sabor das ondas e do vento, e também ao sabor dos peixes que o habitam - há imensos peixes no mar, há uns que se chamam sargos, outros fanecas, outros cavalas e todos eles se pescam com uma cana e um anzol que se oculta com carne de camarão - aquelas vozes empreendiam viagens que não pediam regressos. Quando os olhos de alguém estão tão perto que nos podemos ver ao espelho, quando um hálito quente nos conforta os domingos tristes, não se pensa em regressos só em partidas, regressar cansa tanto e partir traz-nos sempre a vontade do que está por vir.
Viagem
Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho,
e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia-a-dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.
Miguel Torga
P.S. Obrigada, Diogo, pelo poema...

domingo, setembro 07, 2008

Porque o sono não chega!

São 2.13 da manhã. O sono não chega. Deve ser por causa do ritmo adquirido nas últimas noites. Acho que estou triste. Acho que as minhas férias foram insuficientes. Acho igualmente que estou a ter pena de mim própria, e eu odeio isso. Vou ler, afinal, ler acalma-me sempre...

sábado, setembro 06, 2008

Mil Sóis Resplandecentes (e a história de uma carica)


Terminei mais um livro, daqueles que se interpõem quando estamos com a nossa atenção focalizada em um outro. Este livro, exactamente porque me roubou a atenção do primeiro, foi soberbo do princípio ao fim e devolveu-me a certeza de que os livros ensinam, educam e nos fazem empreender as mais ousadas viagens. Com este livro, como se sentada a bordo de um qualquer avião, fui até ao Afeganistão e permaneci lá desde 1964 até Abril de 2003. Assisti, por dentro, à história de um país em permanentes convulsões políticas, que arrastam e modificam todas as outras. Fui Mariam e fui Laila. Fui Tariq e fui Rashid. Fui também um pouco de Aziza e de Zalmai; e fui sobretudo eu mesma, tentando encontrar respostas para perguntas que nem desconfiava ter.

(hoje, depois daqueles segundos em que, estremunhada, faço o reconhecimento rápido do lugar onde acordo, vi-a. estava lá, inerte, atirada como que ao acaso: verde, amachucada, inútil.)

O livro chama-se Mil Sóis Resplandecentes e o seu autor é Khaled Hosseini, autor de um sucesso editorial: O Menino de Cabul (que eu não li). Não sei se foi por o livro contar a história de duas mulheres, ao mesmo tempo que conta a história do país que elas habitam, se foi por passar-se no Afeganistão que eu só descobri ser um país do mundo, após Osama Bin Laden (que nem sequer é afegão), mas a verdade é que o livro me encarcerou e me provocou, em vários momentos, os mais diversos sentimentos. Melhor, transformou-me. E eu gosto quando isso acontece. Sinto que é importante que os livros tenham a capacidade de nos modificar, por mais insignificantes que essas mudanças sejam, ou invisíveis a olho nu.

(só que - se assim não fosse, nem perderia tempo a escrever sobre ela - aquela carica verde, amachucada, inútil tornou-se, de repente, no objecto com mais significado entre os poucos que habitam o meu quarto. estiquei a mão, acaricei-a entre os dedos e decidi guardá-la comigo, fazer dela um impulsionador de memórias - o tempo é inexorável a destruir as memórias que gostaríamos de guardar -, ela devolver-me-á a sensação única do quente, do aconchego dos braços, dos abraços também, das mordidelas doces, do desejo reprimido no silêncio, dias a fio, das palavras que não poderei proferir e do brilho intenso de felicidade escrito nos meus olhos. ela lembrar-me-á igualmente que a vida é um jogo perturbador entre o que revelamos e o que ocultamos ou entre princípios e fins; para este fim, que venham todos os princípios, porque eu, confesso-o, desejo mais caricas verdes, amachucadas, inúteis, perdidas pelos cantos que o meu quarto tem...)

"Laila, minha querida, o único inimigo que um afegão não consegue derrotar é ele próprio." (fala de Babi) Eu pergunto: não é assim com todos nós? Não somos nós mesmos o único inimigo que não conseguimos derrotar?

(vou pegar na minha carica entre as mãos e esquecer o que sinto: que esta carica foi só o princípio de um fim conhecido desde... o princípio.)