segunda-feira, novembro 24, 2008

Coimbra

Quero chamar-te Amor, mas tenho medo que as palavras te firam por não poderes chamar-me Amor na volta. Quero chamar-te, Meu amor, só que temo que aquilo que oiças não seja aquilo que verdadeiramente te digo. Quero dizer-te desapressadamente que não quero ter pressa sempre que damos as mãos e entrelaçamos os dedos de um nos dedos do outro. Quero poder dizer-te sem culpa que nunca pude ser feliz como sou. Também preciso dizer-te que olhos, lábios, língua não achei em nenhum outro como agora acho em ti. Melhor, não me achei em nenhum outro como me acho em ti. Gosto de perder-me nas curvas do teu corpo para me encontrar nas curvas do meu. Gosto do silêncio que se instala por as palavras serem pequenas demais para dizerem o que é grande demais. Quero gritar no penedo da saudade a saudade que tenho de nós dois por saber que jamais seremos só nós os dois. E deixar numa pedra inscrita a dor que sinto nascer na hora da despedida. Ou quereria dizer-te tudo isto se isto não fosse um amontoado de palavras a darem consistência a um lugar. Esse lugar onde a saudade é dita para expressar um amor maior.

A gravata vermelha


Concentrei-me na gravata vermelha. Apesar de ser apenas mais uma gravata vermelha, não maior do que outras que já vira, nem menor; não mais bonita ou sequer mais feia, apenas uma gravata vermelha a cumprir a sua tarefa de ser uma gravata vermelha - embora me dissesse sonhos e fantasias ao ouvido. Se uma gravata pode dizer coisas? Pode. Não uma gravata qualquer, mas uma gravata vermelha. Acreditem-me. Eu não minto. Muito menos sobre gravatas vermelhas dizedoras de sonhos e fantasias.


quinta-feira, novembro 20, 2008

Depois de mim

Morrer é preciso. Morrer não faz parte do leque infindável de escolhas que temos de fazer ininterruptamente. Acontece. Dá-se. A morte não se escolhe, insisto. Nem sequer o momento em que ela se impõe. Já me imaginei morrer, melhor, já me vi morrer de mil e uma maneiras. Há umas que me agradam mais do que outras: afogada, não obrigada. Queimada muito menos. Por acidente jamais. Talvez doente, no recobro de um olhar que me abrace, sem sequer os braços se imporem.
A verdade é que sei que a vida continuará depois de mim. Não igual, necessariamente diferente, não porque eu tenha deixado de existir, mas porque nada permanece igual, nem aquilo que julgamos permanecer. As flores de todos os jardins continuarão a crescer. As crianças sorrirão uma e outra vez. O sol nascerá para os outros, os que ficam. A minha casa continuará no mesmo local, ainda que não seja mais minha. As roupas terão o meu tamanho e o meu cheiro, só lhes faltará o meu corpo a sustentá-las. A música que hoje oiço continuará a ser ouvida. Os filmes que vi e dos quais me tornei parte serão continuamente vistos e farão parte de outros que não eu. A minha família sentirá a minha falta e dirá coisas como vou ter saudades dela. era tão boazinha, todavia, eles continuarão a sentir-se parte de uma família que em tempos também me pertenceu. As solas dos meus sapatos tornar-se-ão inúteis, assim como tudo o que me pertencia: a escova de dentes, os anéis usados no dedo anelar da mão direita, jamais em outros, os brincos. Os livros, os meus livros que são meus porque têm as marcas que lhes pus, como uma mancha de chocolate numa das páginas ou a areia da praia perdida entre palavras impressas. Só que morrer é preciso. E eu sei que morrerei também no rosto de todos os que amei. Embora a minha vida seja somente o amor que sinto; espero que esse amor não morra comigo, mesmo que morrer seja preciso.
Fim

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir

Mário de Sá-Carneiro(1890-1916)
P.S. A ironia da vida é imensa. Enquanto escrevia este texto, a minha mãe ligou-me a dizer que o pai da minha prima Sara faleceu. A Sara já não tem mãe. Agora também já não tem pai.

segunda-feira, novembro 17, 2008

Fado

O fado tem uma tradição antiga em Portugal. Não conheço a sua história, mas não penso que isso seja importante ou, pelo menos, que interfira naquilo que o fado me proporciona. Sei que a palavra tem uma abragência maior dos que os homens, pois para além de designar a canção tradicional de Coimbra e Lisboa, quer dizer destino, sorte, providência. Não tenho qualquer interesse em esmiuçar os significados da palavra, mas sim falar sobre este gosto particular e característico que tem crescido para dentro de mim, à semelhança das raízes das árvores, que crescem no sentido inverso do tronco, dos ramos e das folhas. Há um gosto particular e íntimo na forma como tenho escutado fado ultimamente. Outro dia, em passeio pela Fnac do Chiado, de mão dada com o Rodrigo, dei por mim parada, fixada num ecrã de televisão onde passava a apresentação de Fados, um filme realizado pelo cineasta espanhol Carlos Saura e que faz parte de uma trilogia que se iniciou com a realização de outras duas obras cinematográficas sobre flamenco e tango. Deixei de ouvir o que se passava à minha volta, sem que isso fosse consciente ou imposto. Aconteceu... simplesmente aconteceu; como quando sentimos calor e procuramos sombra, ou quando sentimos frio e nos enrolamos num abraço próprio. Não me lembro de ouvir fado a primeira vez, terá sido Amália, decerto. Digo isto porque a minha avó materna ouvia-a frequentemente. Lembro-me, aliás, de um disco que o meu avô lhe partiu, numa das muitas sextas-feiras em que chegava bêbedo a casa. É verdade que não me lembro da primeira, mas lembro-me da última. Chuva ecoa ainda nas paredes caiadas de que sou feita e a voz da Mariza traz-me o fado em desatino: "As coisas vulgares que há na vida/ não deixam saudades/ só as lembranças que doem ou fazem sorrir (...)"

sexta-feira, novembro 14, 2008

Lisboa

As luzes apagadas. O silêncio como névoa. A sombra dos móveis nos sons dos passos que se temem. Duas margens fundidas no espraiamento de uma cidade ao luar.


Lisboa, esta noite tiveste-me só para ti. Fui tua em alma e ouvi o teu canto de cidade como nunca antes.



Lisboa, foste o reflexo dos meus olhos,

imaginado mil vezes antes de ti.
só te peço, Lisboa, que não te esqueças - nem nos
boémios dias que hão-de vir -, de
ouvir a vida, não a de ontem, mas
a que me deste hoje a mim.




TU

Tenho as mãos manchadas de sangue: voltei a matar.


Este texto tem hoje a responsabilidade de existir. Ele escreve-se por si, independentemente das teclas que eu escolha ou do que o meu pensamento sugira. Teclo na palavra EU mas é a palavra TU que fica escrita. O texto redige-se a si mesmo, sem que eu possa contrariar ou interferir no seu rumo. A teia vai sendo construída para além da minha vontade. Escrevo TRISTE e TRISTE não aparece em lugar algum. Em vez disso, há palavras no ecrã que nem sei o que significam. Inventam-se e recriam-se, tornando-me eu alheia ao processo que deveria partir de mim. Eu quero escrever TRISTE. Deixa-me escrever a palavra TRISTE, por favor. Tenho de escrever TRISTE. E continuamente aquele TU a impor-se mais do que seria desejável. Este texto quer provar-me que é mais forte e mais capaz do que eu. Que, na verdade, a palavra TRISTE não é assim tão importante. Insiste em revelar-me a minha impotência, diante de um bando de palavras que se perfilam à frente dos meus olhos, por baixo dos meus dedos teclantes. E a palavra TRISTE que me confortaria não existe, desaparece no confronto suspenso com a palavra TU.
Tenho as mãos inundadas pelo sangue de inocentes. Lavo as mãos, mas o cheiro não desaparece.

terça-feira, novembro 11, 2008

Os Sinais e o Fogo

Há sinais que escutamos devagar, outros que, sem os escutar, chegam de mansinho e nos revelam mais do que gostaríamos. Há fogos que nos arrebatam por dentro e nem a água gelada que lhes deitamos por cima os faz desvanecer; ou os transforma em cinza, matéria sobrante do que foram e não podem ser mais. Há sinais antes dos fogos. Há fogos depois dos sinais. Os sinais são sempre nossos e de outros também. Os fogos não podem ser objecto de pertença; vão e vêm, para nos avisar que estamos vivos e que o "caminho se faz caminhando", sem a serventia dos atalhos.


E quando os sinais são de fogo?



Sinais de fogo


Sinais de fogo, os homens se despedem.
exaustos e tranquilos, destas cinzas frias.
E o vento que essas cinzas nos dispersa
não é de nós, mas é quem reacende
outros sinais ardendo na distância
um breve instante, gestos e palavras.
ansiosas brasas que se apagam logo.


Jorge de Sena
in Visão Perpétua
Julho/Agosto 1967





domingo, novembro 09, 2008

Fácil de Entender

Esta sexta-feira, fui jantar ao Bairro Alto com os meus alunos estrangeiros do curso de português. Quisemos despedir-nos comemorando a vida que existirá para cada um de nós, após o final do curso. E, sobretudo, quisemos misturar as nossas vivências num pote que não se confina a uma sala de aulas de uma das mais bonitas faculdades de Lisboa: o Instituto Superior de Agronomia.
Entre conversas e risadas em inglês, português, polaco, espanhol e italiano, houve dois alunos, o Pawel e o Marek, que me diziam, em tom confidente, que ouvem a canção Fácil de Entender, dos The Gift, mesmo antes de adormecerem, usando aquela canção como música de embalar dos seus finais de noite. Registei este momento por duas razões, a primeira, e a mais imediata, porque me trouxe a convicção de que uma língua não deve ser ensinada sem estar integrada no seu património cultural; uma vez que dele faz parte. Foi por desconfiar disso mesmo que fiz questão de, no final de cada aula, partilhar com eles música portuguesa, assim como poesia, perseguindo o objectivo de enquadrar a língua que lhes ensinava no património que a configura. Dei-lhes a ouvir Mariza, Luís Represas, Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade, Paulo Praça, Santos e Pecadores, assim como The Gift. E agora, Pawel e Marek não adormecem sem ouvirem Fácil de Entender, essa canção que escutaram pela primeira vez nas aulas de português. Eles até podem sentir dificuldade em entender o que as pessoas na rua dizem, mas a verdade é que escolhem uma música portuguesa para lhes aconchegar os sonhos. A segunda porque, a não existir mais nada que me garantisse que fiz o meu trabalho bem, isto bastaria para me sentir segura da minha prestação. Está fácil de entender...

domingo, novembro 02, 2008

Eterna SAUDADE

Eterna Saudade. Amor de mãe, irmão e sobrinhos. Foste o nosso anjo na terra, agora és um anjo no céu, nunca te esqueceremos. Com amor, para sempre.

Os cemitérios são o consolo dos vivos. E são os velhos que mais facilmente vagueiam por lá, talvez porque a morte, para eles, não seja qualquer coisa de que se oiça falar, mas a matéria dos dias que se aproximam depressa demais. Aos magotes, apropriam-se do espaço e transformam aquela ida em visita familiar e amiga à casa dos que são agora meras fotos e mensagens alinhadas em campas sobre a terra.

- Já foste ao Eduardinho? O filho mais novo da Emília que morreu, o ano passado, num acidente de moto. Coitadinho!

"Coitadinho" é o ponto final para todas as frases ditas no cemitério.

- Se eu soubesse onde era ia lá, coitadinho. Aquela mãe, meu deus, o que sofreu aquela mãe. Coitadinha.

Acompahei a minha avó e a minha mãe pelas ruelas do cemitério, dei o braço à minha avó e deixei que ambas me conduzissem por aquele lugar que conhecem melhor do que eu. A visita começou pelo meu padrinho, falecido em Agosto do ano passado. Vi a campa dele pela primeira vez, tinha uma foto de quando ele era verdadeiramente o meu padrinho e não aquele monte de ossos, dos últimos dias, que rangiam a cada passo e que se cobriam com um blusão de ganga sujo e gasto. Ver a foto dele ali, naquele lugar, fitando-me com olhos robustos e vivaços deu-me vontade de abraçá-lo, tê-lo comigo e ouvi-lo dizer aos meus ouvidos "a minha menina". Ridiculamente, baixei-me sobre a campa, mais precisamente sobre a foto, e imaginei que me abraçava. A minha mãe deixou-lhe uma rosa vermelha gorda, embrulhada em papel de crepe verde, com o autocolante da florista, e pô-la ao lado da foto e das mensagens de pesar da família.
Continuámos a peregrinação e fomos à campa do meu primo Tó. A minha mãe e a minha avó também deixaram lá as flores que traziam para ele. Eu entretive-me a ler as mensagens que as minhas primas encomendaram na altura. Chorei. Não como quando estou triste e zangada com o mundo; chorei devagar, serenamente, lembrando o amor e como esse amor nos rasga por dentro ao sermos obrigados a dizer-lhe adeus para sempre. Entretanto, com as lágrimas ocultadas pelos óculos escuros, ouvi a minha avó dizer:
- Adeus, meu amor, até para a semana. Ela despedia-se do Tó como nos dias em que ia visitá-lo a casa. Ouvi aquela mesma despedida vezes sem conta e ela repetia-o exactamente com a mesma ternura como no tempo em que dele obtinha respostas.
O cemitério é mesmo o consolo dos vivos. Percebi isso quando, ao caminhar em direcção à visita que nos faltava, o tio Isaque, os meus olhos teimavam em fixar-se no lugar onde, em tempos, esteve enterrada a minha avó Maria. Mas ela já não está ali, levaram-na, atiraram os seus ossos para o meio de outros tantos. A família do meu pai não é crente, por isso, optaram pela vala comum. Porém, hoje quis que aquele fosse ainda o seu lugar; egoisticamente, os meus olhos procuraram por ela, embora conhecessem a sua ausência. 12 anos após a sua morte, hoje foi talvez o dia em que mais senti a sua falta.
Estas idas ao cemitério mexem mais comigo do que eu gostaria. Não sou religiosa, aliás, nada. Não sei rezar, não acredito em deus e não frequento lugares de culto. Todavia, não posso deixar de admitir que aquele ambiente me perturba. Vi um rapaz, de joelhos no chão, de livro aberto entre as pernas, a ler para uma campa vazia. A verdade é que só para mim é que ela está vazia; para ele, está ali sob a terra um riso, um cheiro, uma voz que ele conheceu e amou.
O cemitério é o consolo dos vivos. É por isso que eu não me senti consolada. A minha morta, a que eu desejava visitar, aquela a quem eu conhecia o riso, o cheiro e a voz não habita mais aquelas terras. Eu entrei e saí de mãos vazias.