terça-feira, março 31, 2009

Londres: a cidade desmembrada

Londres não é uma cidade. Não é.

Londres existe na confluência e intersecção de várias e distintas cidades. Passar de uma a outra é efectivamente passar de uma dimensão a outra. Os londrinos são sobretudo colombianos, gregos, alemães, italianos, portugueses, espanhóis, argentinos, argelinos, turcos, tunisinos, angolanos, marroquinos, chineses, japoneses, etc., etc., etc., que inundam as avenues, roads e streets. Eles estão por todo lado e emprestam à pouca luz da não-cidade um brilho curioso que interessa explorar.

Não vi velhos, em Londres, e vi pouquíssimas crianças. Só milhares e milhares de jovens com sonhos expostos nos olhos e esperanças dilantando-lhes as veias. A maior parte destes jovens não vai a casa - casa tem aqui a significação de lugar de onde se é proveniente -, assim como não vê a família com a regularidade desejada. É por isso que o tempo em Londres tem uma contagem especial. Não há almoços aos domingos com o pai, mãe e irmãos. O tempo que sobra do trabalho ou do estudo é para os amigos, que são uma espécie de família-inventada-pela-necessidade-imperiosa-de-afectos. Ali, toda a gente ajuda toda a gente e, apesar da solidão ser um gene que se adquire na distância, ninguém está realmente sozinho.

Defendo a ideia de que os super-heróis não são os de capa e espada, que salvam a Humanidade de terríveis malfeitores; os verdadeiros super-heróis são aqueles que se salvam a si mesmos permanentemente e que têm a capacidade de se reiventarem as vezes necessárias: gente como a Daniela, a Carmen, o Stavros, o Oliver, a Alexandra, o Majiek, o Fardad, o Sérgio, a Bibi, pois tiveram a ousadia de abandonar o conforto do lar e a segurança da sua família para fazer parte do futuro em que desejam viver. É-me possível admirá-los por conhecer pessoas, tristes com o seu fado, ou melhor, fardo, uma vez que têm de percorrer 30 quilómetros para chegar ao seu local de trabalho. É que ir e vir todos os dias, enfrentar engarrafamentos de trânsito, no quente do seu automóvel, fá-los maldizer o país em que vivem. Ou admiro-os mais ainda por conhecer pessoas que estão cansadas da vida mesmo antes de se levantarem da cama.

Londres não é uma cidade onde desejasse viver. É fria, segmentada, heterogénea, desmembrada e sem vivência marítima. Mas a dimensão humana que por lá se encontra obrigou-me a aprofundar o olhar sobre mim e sobre tudo o que me rodeia. E a importância de viajar está nisto.

Acabei por não ir a Nothing Hill ou ir ver o Big Ben, mas fui a Camden Town, a Hacney, a Backyard Market, ouvi Dela Sosimi - um grupo que toca num bar em Dalston - e estive em Whitechapel, onde Jack, o Estripador matou cinco mulheres. Melhor ainda, vivi a vida londrina da Daniela e vim convencida de que a amizade é mais, muito mais, do que a presença continuada ou quotidiana. A verdadeira amizade faz-se de pequenos e permanentes gestos.

quinta-feira, março 26, 2009

Empty box

Amanhã parto. A partida exige pouca bagagem, para não desperdiçar espaço imprescindível no regresso. Quando chegar, quero ter a minha bagagem cheia de Big Ben, de Harrold's, de Hyde Park, de Daniela, de bares quentes e barulhentos, de noites mal dormidas em sacos-cama espalhados pelo chão, de riso e luz de Cláudia, de alívio por regressar a casa, aos braços de quem me ama todos e a cada dia, longe ou perto, bonita ou feia.
É inevitável o medo do avião a quem me deixa partir e aguarda, ansioso, pelo meu regresso. O Rodrigo, logo pela manhã, mencionou sentir medo de o meu avião cair. Eu não penso sequer nessa hipótese. Ou só remotamente, mas entendo-o, pois sempre que ele se ausenta, na sua maioria das vezes, de carro, não há uma única vez que não pense, ao beijá-lo, que aquela poderá ser a última vez. Nesse instante, prolongo o beijo e assim que ele termina, não permito que aquele pensamento de acidente/última-vez-que-te-vejo permaneça por muito mais tempo em mim.
Disse-lhe para não se preocupar, se por acaso o meu avião caísse, a única coisa que ele teria de fazer era chorar a minha morte e continuar com a sua vida procurando ser feliz, mesmo sem a minha companhia.
Pode parecer cruel, mas é prático. As pessoas morrem todos os dias e todos os dias há outras obrigadas a recontinuar vidas, apesar das perdas. O Rodrigo não seria excepção. Embora me apetecesse que ele fosse, pela razão do imenso amor que lhe tenho.

quarta-feira, março 25, 2009

Preguiça?! Nã...

A preguiça é uma doença assustadora. Quando resolve atacar não há posologia alguma que a irradique. O segredo é fingir que ela não é mais forte do que nós.

Trocar papéis de sítio, fazer telefonemas desnecessários ou mandar e-mails inúteis dá-nos aquela sensação de que conseguimos, ainda que com algum esforço, vencê-la. Mas é pura ilusão: ela sabe e nós sabemos também. Sentada, à espreita, aguarda pelo momento da hecatombe: a boca abre em jeito de dolente espreguiçamento e os olhos, mortiços, fecham-se sobre si mesmos. Nesta fase, não dá mais para ignorá-la.

Chato é quando o chefe entra pela sala dentro e já se trocou todos os papéis de sítio, fez-se todos os telefonemas desnecessários e enviou-se todos os e-mails inúteis; sobra ainda a famosa frase:


- Preciso de ir beber um café. Esta noite não dormi muito bem.


Lixado, lixado, é se o chefe conhece perfeitamente a nossa aversão ao café.


Moral da história?


Nunca contar ao chefe, ou deixá-lo perceber, que não gostamos de café.




quinta-feira, março 19, 2009

Amar... livros

É como quando trocamos olhares com alguém pela primeira vez: a mesma ansiedade, a mesma compulsão para o toque, para ver e ser visto, a mesma capacidade para ignorar tudo o que existe à nossa volta, a mesma necessidade do cheiro, de sentir aquele cheiro único, próprio, a mesma vontade de o desnudar à nossa frente e fazermos amor com ele irrepetidas vezes, até à saciedade, à fartura, à lassidão: até que o seu corpo inexista e se torne o nosso corpo.
É assim de cada vez que olho para o livro que estou prestes a iniciar. Enquanto não devoro as folhas e me alimento das palavras que as compõem, limito-me a olhar para ele e a desejá-lo intensamente.
O meu próximo livro chama-se Somos o Esquecimento Que Seremos (El Olvido Que Seremos - no título original) e, para mim, nesta fase, não há outro que me apeteça tanto como este: eu bem digo, como aqueles olhos com quem trocamos olhares pela primeira vez. O seu autor é colombiano e chama-se Héctor Abad Faciolince.
Verdade seja dita, nem aos livros sou fiel. Sou incapaz de ler apenas um. Há sempre vários na minha cabeceira, ainda que normalmente vagueie entre dois deles. Como os Sinais de Fogo, do Jorge de Sena, é um romance altamente introspectivo, difícil de ler; intrometo-me nas páginas de outros, para que o regresso ao original seja mais intenso e dedicado.
Ainda me vem o tal papa não-sei-quantos pregar à fidelidade e à abstinência, recusando o benefício dos preservativos na contenção do HIV.
Não fossem os preservativos, já eu tinha parido não sei quantos livros-bebés à custa de tanta infidelidade literária. E depois quem os sustentaria? O tal papa não-sei-quantos? Que deve saber tanto de crianças, de fidelidade, de HIV e de pobreza como de abstinência.
E por que não se abstém ele e a Igreja Católica de fazer comentários totalmente absurdos e em desacordo com o mundo actual?
Eu digo: a infidelidade é uma certeza e a abstinência uma violência.

quarta-feira, março 18, 2009

Londres: a porta azul

Vou a Londres. Dia 27 de Março, pelas 18.35.
Não conheço a cidade, uma vez que nunca lá estive. Ainda assim, conheço a cidade, mesmo sem nunca lá ter estado. Pelos amigos que a habitam, pelos amigos que já a visitaram, pelos livros que dela falam, pelos filmes que nela se rodaram. Há um em particular que me ofereceu uma imagem da cidade que alimentei como sendo a que gostaria de encontrar: Notting Hill. Uma comédia romântica protagonizada por Julia Roberts e Hugh Grant. Apesar de ser um filme ligeiro, com alguns momentos hilariantes, muito à custa da personagem interpretada por Rhys Ifans - quem não se lembra das cuecas de Spike reveladas às centenas de jornalistas? - , há ainda a livraria onde os protagonistas se conhecem e a porta azul da casa que a personagem de Grant habita.
Quem não gostaria de morar numa casa de porta azul? A mim parece-me que uma porta azul seria uma entrada mais simples e eficaz para os sonhos.
Em breve, Londres deixará de ser um sonho e tornar-se-á numa memória... e por que não azul?

sábado, março 14, 2009

Só sozinha.

Não me apaixono por homens, mas por histórias. E quanto mais impossíveis, melhor. Se vislumbro a mínima oportunidade da relação resultar em qualquer coisa duradoira e saudável, fujo. O meu corpo entra em rejeição absoluta e, sem que o processo resulte em algo consciente, resguardo-me num manancial de motivos para sustentar a minha esperável fuga:
1. Ele é solteiro e não tem namorada. Tem algum problema;
2. Ele vive com os pais;
3. Ele não tem um trabalho interessante;
4. Ele diz "prontos" ou "hadem" ou "gostastes";
5. Ele gosta de filmes como o "Australia";
6. Ele não gosta de ler;
7. Ele manda-me demasiadas mensagens;
8. Ele não manda mensagens.
Há qualquer coisa de trágico e irreversível no que digo, assim como de verdadeiro e honesto.
A autodissecação não é um caminho fácil, olhar para dentro de nós pode cegar-nos, pois a maior parte dos dias vivemos com um "eu" inventado, um "eu" ficcionado à medida das nossas necessidades.
Cheguei a um caminho de não-retorno. A generalidade dos homens desperta-me interese durante os primeiros cinco minutos; após esse tempo, que poderia ser medido matematicamente, o feitiço termina e encontro-me preparada para sair dali e esquecer que ele existe. As chamadas irritam-me, os sms devoram a minha simpatia e cordialidade.
Quero ser eu sozinha, mas ao mesmo tempo, sei que não é justo, nem para mim própria, tal desejo. Os cabelos cair-me-ão, antes ou depois dos dentes, a pele enrrugará, antes ou depois dos ossos, e o espelho devolver-me-á uma imagem que hoje ainda é uma miragem. E ao meu lado ninguém com quem partilhar o esquecimento.

quarta-feira, março 11, 2009

As ROSAS também murcham

Há mulheres que por serem tão iguais a outras se distinguem delas por pequenos traços. Porque quando riem, os olhos tornam-se maiores do que a alma, porque têm a mania inquietante de colocar a mecha de cabelo por detrás da orelha, porque decidem defender aquilo em que acreditam contra um mundo em desagregação. Para mim, estas são as verdadeiras heroínas. Mulheres simples, de gostos simples, com sonhos por cumprir e ideais que guardam nos bolsos, ao lado da foto do namorado e da moeda da sorte.

No dia 5 de Agosto de 1939, 13 mulheres simples, com menos de 19 anos, foram fuziladas por terem ousado retirar do bolso, não a foto do namorado ou um golpe de estado, mas os ideais em que acreditavam. Estas mortes decorreram em Madrid, logo após o fim da Guerra Civil e o início da Segunda Guerra Mundial, quando Franco liquidou comunistas que não concordavam com o seu fascismo ou porque antes de se deitarem não se ajoelhavam perante um Deus que era para eles inexistente: "Nada alimenta o esquecimento como uma guerra ... Todos nos calamos e as pessoas esforçam-se por nos convencer de que aquilo que vimos, aquilo que fizemos, o que aprendemos de nós próprios e dos outros é uma ilusão, um pesadelo passageiro. As guerras não têm memória e ninguém se atreve a compreendê-las até não haver vozes para contar o que aconteceu, até chegar o momento em que já ninguém as reconhece e regressam, com outra cara e outro nome, para devorar o que deixaram para trás." (Carlos Ruiz Zafón, A Sombra do Vento, pág. 350, 3.ª edição, Dom Quixote)

Las 13 Rosas, do realizador espanhol Emílio Martinez Lázaro, funciona como uma das vozes que nos desassombra o olhar e nos ajuda a não esquecer o que ficou para trás.

Ainda assim, gostava que houvesse um filme que me contasse sobre os homens por detrás das metralhadoras...



sábado, março 07, 2009

Sometimes

Em determinadas alturas, e só em determinadas alturas, não importam as razões, uma vez que o resultado, independentemente daquelas, é o mesmo...

terça-feira, março 03, 2009

Março

Março.
A árvore que existe em frente à janela da minha cozinha já tem folhas.
As folhas que existem na árvore que está em frente à janela da minha cozinha já tem pássaros.
Os pássaros que saltitam nas folhas da árvore que existe em frente à janela da minha cozinha já cantam.
O canto dos pássaros que saltitam nas folhas da árvore que está em frente à janela da minha cozinha é doce e sincero.
Doce e sincero é também o início de qualquer nova estação. Mas Março anuncia aquela que faz do canto dos pássaros, em folhas de árvores existentes à frente de qualquer janela, de qualquer cozinha, a mais ansiada, a mais desejada também.
Espero-te, Março, no canto desta estação.