sábado, outubro 31, 2009

Há concertos que nos beijam

Não percebo porque demoramos tanto tempo a fazer determinadas coisas. Talvez, sem sabermos, estejamos apenas à espera do momento certo para fazê-las.
Ontem foi o dia certo para ver Rodrigo Leão ao vivo pela primeira vez. E que vez. E que primeira.
O Coliseu estava cheio. O palco também: sintetizador, acordeão, violino, viola de cordas, violoncelo, baixo e bateria. Por detrás deles, o sol. Pequeno, primeiro. Imenso, depois. Crescia com a música.
Não consigo reproduzir em texto as sensações que o concerto, desenrolando-se, acontecendo, fez nascer em mim: senti extâse. Senti compaixão. Senti tristeza. Amor. Felicidade. Dor. Melancolia. Saudade. Senti-me a mim, nua, exposta.
Nunca pensei ser possível cantar de forma irreprensível em português, em inglês, em francês, em castelhano. É possível. Ana Vieira fê-lo diante dos meus olhos que eram também os meus ouvidos. A minha boca era ouvidos. As minhas mãos em ouvidos se tornaram. O meu corpo, todo ele tímpanos a descoberto.
Apeteceu-me, variadíssimas vezes, voltar atrás com a "cena". Ouvir de novo aquele lamento de violino em crescendo. Apeteceu-me ter um comando e fazer pausa, rewind vezes sem conta, sem conta ou peso ou medida. Impedir o fim. Como quando assistimos a um filme que nos diz tanto que desejamos desesperadamente adiar o seu final.
Histórias, A Corda, Pássaros de Panjim, Viagem a Goa, This Light Holds So Many Colours, Sleepleess Heart, Vida Tão Estranha, Cathy, No Sè Nada, Ya Skaju Tebe. Outros. Muitos outros temas em festim de composição clássica, revestida de contemporaneidade futurista.
Brilhante, foi por isso que saí de lá a cintilar.

sexta-feira, outubro 30, 2009

O Relógio

Não ser nada. Não sentir nada. Transformar esta loucura que as vozes dizem ser minha em estilhaços de coisa nenhuma.


Acordar leve, livre, solta, sem este peso do mundo em mim. Sem este "finge que ama" a ser sombra dos meus passos, sombra dos meus passos. Passos. Sombra.


Achar normal o que não é normal. Amar amando. Chorar chorando. Gritar gritando. Desesperar desesperando.


Abrir valas e grutas na alma.


Plantar corações nas plantas dos pés. Esperar que os corações cresçam. Ser só coração. Ser só. Ser coração. Ser ser.











Vida tão só, vida tão estranha. Meu coração tão maltratado. Nem já chorar me traz consolo. Resta-me só o triste fado.


A gente vive na mentira. Já não dá conta do que sente. Antes sozinha toda a vida. Que ter um coração que mente.

quinta-feira, outubro 29, 2009

Pride, mas sem qualquer espécie de Glory


Ontem fui ao cinema: fiquei sentada entre um Sol e um Conimbricense. O Sol sentia-se agastado com o dia; o Conimbricense não tinha tido tempo de tomar o seu 2.º banho diário. Eu estava em rota de colisão com o mundo. A escolha do filme, pelo que se descreve, não poderia ser baseada em critérios comuns: boa história, bons actores, filme inteligente, etc.; queríamos apenas garantir que não íamos adormecer durante a sessão - dois de nós conseguiram cumprir esse objectivo.

Apesar de termos todos vontade de ver The Soloist, optámos por Pride and Glory. O filme tem realização de Gavin O'Connor e é protagonizado por Edward Norton (suspiro suspirado), John Voight (suspiro aborrecido) e Colin Farrell (suspiro enjoado).

De forma muito rápida, explico o que há a explicar sobre o filme: transmite a moralidade sobre a importância da família e até onde estamos dispostos a ir para preservar a sua segurança, à semelhança do que já tinha feito Mystic River, ainda que, em Mystic River, a exploração do carácter das personagens e das suas histórias pessoais não tenha ficado pela rama; e aflora o tema da corrupção policial e as implicações que essa corrupção tem na estrutura familiar - aqui muito à semelhança de We Own The Night, mesmo que sem a força narrativa e a interpretação irrepreensível do Joaquin Phoenix.

Pride and Glory não tem nada para oferecer, a não ser uma amálgama de lugares-comuns aborrecidos, um John Voight (suspiro aborrecido) que não consegue convencer-nos de que a sua personagem encaixa na lógica da narrativa e um Colin Farrell (suspiro enjoado) que já não me surpreende pela fraqueza interpretativa que costuma emprestar aos seus personagens e, sobretudo, duas cenas de extrema violência, em que não foi possível ficar com o rabo quieto na cadeira. Minto: teve também a participação do Edward Norton (suspiro suspirado); o dormitar do Sol e a incapacidade para ficar quieto do Conimbricense - as cadeiras eram demasiado pequenas para Sua Majestade.

quarta-feira, outubro 28, 2009

Rotinas: a fuga

Não sei o que se passa no mundo. Esta semana tenho-me sentido desligada de tudo. As rotinas instalam-se e, por vezes, é difícil escapar delas. Aguardo pela sexta-feira e pelas músicas de Rodrigo Leão. Aguardo pelo embalo gentil daquelas melodias claras e revigorantes, que contam histórias que me apraz ouvir. Aguardo pelo passeio matinal de sábado e pela visita aos meus avós, que aguardam, em silêncio, que eu os visite. Aguardo também pela minha primeira aula de surf, no domingo. E com estas coisinhas todas vou redesenhando uma semana que, não fossem elas, seria apenas uma semana, de tantas outras que já passaram por mim.

sexta-feira, outubro 23, 2009

Mais uma vez, COIMBRA

Estou prestes a iniciar outra viagem a Coimbra. Nunca me canso daquela cidade. Regressarei convicta de que Coimbra ficou diferente depois de mim e de eu fiquei diferente depois dela. Quero ler, passear pelas ruas e quero também ir ver a minha primeira ópera: La Traviata, de Verdi. Uma composição que se baseou no texto A Dama das Camélias, de Dumas. Não percebo nada de ópera, mas desconfio que não se deve morrer sem ter experimentado um bocadinho de tudo. Depois de hoje, poderei riscar a ópera da minha lista de coisas a fazer.

P.S. Há pouco, alguém me disse que estava a acabar de ler, entusiasmado, A Sombra do Vento, de Zafón. Senti-me como uma criança que encontra, na praia, uma pedrinha mais brilhante do que as outras e a guarda no balde como se esse fosse o seu tesouro mais precioso. É um tesouro precioso ter a possibilidade de acrescentar um pouco do que somos naquilo que os outros são, não é?

quarta-feira, outubro 21, 2009

Que Escritor É Este Que Nos Traz Novo Livro Com Um Título Que Não Acaba Nunca?


Estará bevemente disponível, nas livrarias, um novo livro do escritor Nobel sempre adiado, António Lobo Antunes (ALA em diante): Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?

A sessão de lançamento decorrerá no Teatro S. Luís, amanhã, pelas 18.30. Por ocasião deste lançamento, ALA concederá uma entrevista a Judite de Sousa, na RTP1, logo após a sessão ter lugar.

Hoje tive oportunidade de ouvi-lo, na Antena 2, a respeito deste seu novo trabalho.

Apesar de nunca ter lido nenhum livro do ALA, por opção pessoal, gosto de ouvi-lo falar sobre a sua actividade, mais do que não seja, por considerar que ele adopta uma atitude curiosa e intrigante sobre a sua profissão. Ao contrário do que muitos escritores defendem, como por exemplo Mia Couto, ALA afirma que não se interessa nada por contar histórias, tratando cada livro seu "do que vem lá dentro", disso e nada mais do que isso.

Na verdade, não existe nenhum curso que habilite seja quem for a escrever. A profissão de escritor acontece porque algum factor que se desconhece assim o determina.

ALA defende aquilo que Bach já defendia em relação à sua genialidade enquanto compositor, qualquer um pode fazer tão bem ou melhor do que ele próprio, desde que trabalhe. Ou seja, para ALA não há magia, intuição, inspiração que salvaguarde um escritor do empenho e do trabalho diário que a escrita exige. Para confirmar esta teoria, confessava que tinha estado, no dia anterior, oito horas para escrever apenas três páginas.

A dar razão a ALA, o que fazemos com o que conta Fernando Pessoa, na sua carta a Adolfo Casais Monteiro, sobre o aparecimento de Alberto Caeiro?


"Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro."



"Para escrever é preciso orgulho, paciência e solidão." Segundo ALA, estes serão os requisitos para fazer da escrita o lugar de onde se aprecia o mundo.

terça-feira, outubro 20, 2009

Febre que é o tempo que não se tem

Deixo-vos um excerto do livro que me ocupa por estes dias. Ryszard define a relação do homem europeu com o tempo para depois explicar em que dimensão essa relação é diferente em África. Tudo é diferente em África. TUDO.
As semelhanças entre o texto e a rotina dos nossos dias não é mero acaso, existe, é factual e, acredito eu, irreversível:
"O europeu está convencido de que o tempo tem uma existência exterior a ele próprio, uma existência objectiva e com uma natureza mensurável e linear. Para Newton o tempo era absoluto: «O tempo absoluto, real e matemático flui em si e na sua natureza uniformemente, sem relação com nada que lhe seja exterior...» O europeu vê-se a si próprio como um escravo do tempo, está dependente dele, é-lhe submisso. Para poder existir e funcionar tem de respeitar as suas leis férreas e imutáveis, as suas regras e princípios inflexíveis. Tem de respeitar prazos, datas, dias e horas. Move-se dentro da máquina do tempo, não pode existir fora dela. Esta máquina impõe-lhe as suas obrigações, exigências e normas. Entre o homem e o tempo paira um conflito irresolúvel, que termina sempre com a derrota do homem - o tempo destrói-o."

segunda-feira, outubro 19, 2009

gaveta

encontrei um papel perdido na minha mala, entre outros papéis. um papel quadrado, leve, de textura apapelada, de cor roxa, com umas letras e uns números inscritos: 5 (sábado) n.º 09778 Festa2009 Avante 4,5 e 6 Set., e em letras pequeninas, quase ilegíveis, Atalaia, Amora, Seixal.
Como um tumulto, memórias desaguaram em mim, assim fosse eu um rio:
sede. fontes sem água. pés em sobressalto de pó e areia. corneto de morango. magnum. cabeça ferida. sangue que escorre. água que lava sangue que escorre. mãos dadas contra a multidão. multidão em alegria, uma disforme outra conforme. cervejas. música ao longe. livros. manuel tiago. álvaro cunhal. alguns livros lusófonos. caras conhecidas: estás grávida? não, estou só gorda. embaraço. fome. nada para comer. mandioca de milho porque esgotou tudo o resto. bola depois. conversas empoeiradas à volta de uma mesa que abana. charutos. cigarros. cigarrilhas. gargalhadas. daniel com frio. daniel com casaco horrível comprado à pressa. fotografias de um dia feliz. mãos dadas contra o frio e a fome. música ao desbarato. clã. ela tem sotaque. não tem nada sotaque. ela diz as palavras mal: ouve. ela não diz palavras mal: ouve tu, com atenção. fim da festa. abraços aquecidos. carro num parque distante. conversas prolongadas pela rua fora. multidão que se despede. polícia que não entra. bêbedos que deambulam sem dar conta que deambulam. amor que nasce e que aquece o rosto dos que nele se vêem em espelho. quero voltar. quando houver a promessa de um dia igual.

sexta-feira, outubro 16, 2009

Canção de embalar

Canta-me uma canção de embalar, amor.
Canta-me uma canção de embalar, amor, amor, amor.
Canta-me uma canção de finais felizes, de amores iluminados, de amantes e amadores e coisas amadas. Canta-me essa canção de embalar e embala-me na voz profunda que exalta em mim o perfume da vontade.
Canta-me uma canção de embalar, amor. Uma canção que impeça o longe de acontecer.
Canta-me uma canção de intenções e não deixes que as vozes da discórdia indiciem que não há amor, amor, nos teus gestos, no teu leito, onde eu gosto tanto de adormecer.
Menina, perdida, distante, mulher, preciso da tua canção de embalar...

quarta-feira, outubro 14, 2009

Escritaria

Depois de uma noite pouco dormida, nada como apanhar boleia destes raios de sol que ajudam o cerébro a espreguiçar as ideias que pairaram, revoltas, nos poucos lençóis que me confortaram, durante a noite.
Em dias como este, quando o sol me arrebata e acaricia suavemente, não me importo com os carros, aliás, nem deles me lembro.
Lembro-me de outras coisas, do sabor do iogurte com cereais desta manhã; das imagens da noite passada a entrar na minha consciência e eu a rejeitá-las, a dizer-lhes que as não quero, que as desprezo; lembro-me das leituras que fiz noite dentro, porque a noite teimou em não entrar em mim.
Há um novo livro de Saramago nas livrarias, Caim, e isso faz-me pensar que não deve haver ateu nenhum que se sirva tanto das imagens biblícas para fazer literatura. Ao mesmo tempo, penso que só um ateu pode usar essas imagens com o distanciamento exigido.
Em Penafiel decorre o Festival Escritaria, dedicado, este ano, a Saramago. Há literatura pelas ruas, nas pedras, nas paredes e nas lojas. Também nas lojas de lingerie se poderão ler as palavras do escritor. Até porque, diz ele, a nossa vida é toda ela ficção.
A minha não tenho eu a menor dúvida de que é. Como ficcional foi a noite de ontem que acabou por não se cumprir.

domingo, outubro 11, 2009

Aniversário

"No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto."
Álvaro de Campos, in Poesias de Álvaro de Campos

Há um tempo em que do tempo nada queremos, nada exigimos, nada esperançamos. O tempo em que, meninos, só temos tempo para ser feliz.

Depois, vem o tempo em que do tempo tudo queremos, tudo exigimos e, esperançados, esperamos que a vida nos dê todo o tempo que tem. O tempo em que, crescidos, temos tempo para tudo, excepto para ser feliz.

Penso em ti menino. Cheio de tempo. E penso na poesia da Ana Paula Tavares:

"Cansada de voar pássaros

à boca do vento

a avó

cortou o pão e a mandioca."

Ana Paula Tavares, in Ex-votos

sexta-feira, outubro 09, 2009

Fall in the Winter

O tempo retoma, devagar, o seu lugar à mesa.
Agosto não volta mais, nem as memórias de um amor feliz.

Os sonhos são por estes dias devorados pela malícia do Outono.

Não há corpos nus pela casa.
Não há olhares retidos na retina dos meus olhos.
Não há desejos por cumprir. Nem cumpridos.

Só há esta certeza incómoda de que cada passo dado
me deixa mais próxima do definitivo adeus.

quinta-feira, outubro 08, 2009

Pai herói




O meu pai faz hoje 56 anos. Mas só é meu pai há 33. Não sei o que fez ele com o resto do tempo em que não era meu pai. Já para mim não há contagem de tempo possível sem que o meu pai seja meu pai.


O meu pai defende-me dos maus - porque ele é dos bons. Quando se zanga, as narinas dilatam-se-lhe, a testa e o olhar contraem-se e os punhos cerram-se sobre si próprios - ele fica a parecer mau, mas não é, é bom.


O meu pai levava-me à escola de carro. A mim e aos meus colegas e eu ficava contente, porque os carros dele faziam sempre barulhos de carros rápidos. E os meus colegas também gostavam de andar nos carros rápidos do meu pai. Hoje eu sei que não eram os carros que eram rápidos, ele é que era.


O meu pai nunca me leu histórias. Mas contava-me as dele. Conheci o Alentejo, a praia do Dafundo, os combóios, o gosto das azeitonas antes de tudo.


O meu pai era muito pequenino quando começou a trabalhar. Aos oito anos, já fazia recados num talho. Às vezes, o meu pai fazia-me festinhas e lembro-me de, nessas alturas, sentir-me a filha mais feliz do mundo. A primeira vez que o vi chorar foi quando morreu a minha avó Maria. Ele chorava tanto, tanto e eu queria tanto, tanto dizer-lhe: "Pai, não chores que eu estou aqui". Mas não disse e chorei também.


Depois disto, o meu pai nunca mais foi feliz como era. E vê-lo chorar tornou-se frequente. Eu sei que a maior prenda que lhe podia dar era oferecer-lhe o colo da minha avó só por mais uma vez. Só por um bocadinho. Mas não posso, pai. Não posso.


O meu pai jogava futebol. E antes do futebol, praticou natação. Ele foi convidado a integrar a equipa do Benfica, mas a minha avó não o deixou ir - além do meu pai ter de trabalhar, ela não suportava a ideia de ficar sem ele mais do que uns dias. O meu pai não foi.


Há uma coisa que eu nunca lhe disse, e que acho que ele nunca desconfiou: o Rodrigo, pai, tornou-se nadador porque tu não pudeste. E ele nada por ti o que tu não nadaste. As vitórias do Rodrigo na água, pai, serão as tuas vitórias.



O meu pai faz hoje 56 anos e eu não me lembro de mim sem me lembrar dele primeiro.



quarta-feira, outubro 07, 2009

Quero querer o que quero

Quero ir a Évora, à Fundação Eugénio de Almeida, ver a exposição de Mário Cesariny. Quero ir ao Espaço Lisboa, assistir ao lançamento do mais recente livro de Luandino Vieira, O Livro dos Guerrilheiros. Quero ir ao Porto ver a encenação do texto O Marinheiro, de Fernando Pessoa, pelo Teatro Plástico. Quero ir à Casa das Histórias, em Cascais, embrenhar-me nos desenhos-que-são-também-pinturas de Paula Rego. Quero ir ver alguns filmes, como Parlez-moi de la Pluie, no Cinema São Jorge, no âmbito do 10.º Festival de Cinema Francês. Quero chegar a casa e deitar-me na minha cama sem pensar em coisa alguma. Quero ler tudo o que houver sobre o massacre no Ruanda. Quero crescer e deixar que os outros cresçam. E quero ser generosa até à medula para ensinar aos ignorantes que saber receber é tão ou mais importante do que saber dar. Quero querer tudo isto que quero, como quero...

terça-feira, outubro 06, 2009

Onde há fumo, há fogo?


Se o Jorge Mourinha - quem não conhece, é um dos críticos de cinema do Público - avaliar um filme com duas míseras estrelas (duas estrelas correspondem a "Razoável") - e quem diz o Jorge Mourinha diz o Vasco Câmara, o Luís M. Oliveira ou o Mário J. Torres - então é aconselhável uma ida ao cinema.

Não gosto de menosprezar o trabalho dos outros, e sei perfeitamente que a crítica é uma actividade difícil e delicada, quando realizada em consciência. Ainda assim, não posso deixar de manifestar a minha incredulidade perante juízos críticos que reduzem determinados filmes à medíocre medianidade.

Veja-se o caso de Longe da Terra Queimada, de Guillermo Arriaga, o fabuloso argumentista de Babel e 21 Gramas; Jorge Mourinha classifica o filme como "Razoável". Uma classificação absurda que se constata nos primeiros minutos do filme.

Alguém explica aos senhores críticos que os filmes não têm de ser exercícios de abstracção poética ou de masturbação intelectualizante para merecer classificações superiores à que estão normalmente dispostos a dar?

O filme traz-nos uma Charlize Theron gélida, que se alimenta do sexo que vampiriza a clientes do restaurante onde trabalha; uma Kim Basinger, mãe de família, que não desiste de sentir-se desejada (o plano que Arriaga faz das mãos da actriz não deixa margem para dúvidas, Kim Basinger envelheceu), um Joaquim de Almeida apaixonado por uma mulher que não é a sua; planos temporais distintos mas que interagem na perfeição (interacção muito bem conseguida numa das cenas finais, quando todas as personagens estão a entrar para o carro); uma história de amores e desamores, principalmente o desamor que algumas personagens sentem de si próprias; e a renovação da vida, da culpa, mas também da esperança pelo fogo.

Concordo que o filme não esteja ao nível de Babel, muito menos de 21 Gramas; a resolução do enigma narrativo é relativamente óbvia e a interpretação de Charlize Theron está muito colada à de Nicole Kidman em The Human Stain, um filme de Robert Benton, do ano 2003. Todavia, parece-me que "Razoável" não coloca o filme ao nível que ele merece.