terça-feira, agosto 31, 2010

Saw VIII - O ataque do Pisão

Acho que era um dia de sol. Não excessivamente quente. Nem frio. Um dia de sol como outros.
Acho que foi numa casa de pessoas extraordinárias. Pessoas que não encontram no mundo exterior um lugar que possam chamar de seu.
Acho que foi num dia de trabalho comum. Umas coisas por arranjar. Umas ferramentas tiradas da caixa, sem pressa.
Até que, no corredor, um tipo de olhar alucinado, com uma faca em riste, desata a correr para ele.
A faca. Só pensava na faca. A faca a rasgar-lhe a pele. A faca a feri-lo de morte.
Deixou as ferramentas para trás. O trabalho para trás. O sol para trás.
Correu sem mais nem comos. Atravessou o corredor em passadas largas e imprecisas.
A faca. A faca a aproximar-se. O corredor a terminar. A parede a transformar-se em obstáculo impossível.
Olhava para trás em golfadas. Sustendo a respiração.
O outro seguia-o. Com a mesma cara de antes: alucinada. E a faca na mão. Em riste.
Acabou o corredor. Acabou a corrida. A parede estava ali: intransponível.
Só a faca poderia atravessar a fronteira do ar e entrar, por fora, dentro. Feri-lo. De morte.
Voltou-se para trás, rendido. Desistente.
O outro, o que o seguia, parou de correr.
O olhar? Alucinado.
Olhou para ele, bem fundo nos olhos, e disse-lhe, estendendo-lhe a faca temida:
- Toma. Corre tu agora atrás de mim.

segunda-feira, agosto 30, 2010

Diálogo sobre a morte

Alguém - Tu não vais ficar triste se o avô morrer?
Ela - Não. Ele sabe e eu sei o que vale a nossa relação. Ninguém engana ninguém. Não somos chegados.
Criança - Olha, ela não fica triste porque depois nasce um outro avô...

sexta-feira, agosto 27, 2010

Paga e não... bufa

Há muito que desejo fazer um curso de escrita criativa. Tentei fazer um em 2008 ou 2009, mas aguentei-me apenas duas ou três aulas. Aborreci-me. Aborreço-me com facilidade.
Ontem, numa pesquisa que fiz, lá encontrei um que me pareceu interessante, mas apenas até ter trocado três ou quatro emails com o formador. Além das aulas serem particulares - o que até poderia ser interessante na medida em que há necessariamente um maior investimento do formador no formante - o que mais me irritou - confesso - foi o senhor exigir o pagamento integral do curso antes sequer das aulas terem início. É tão disparatado como eu chegar a um restaurante e pagar antes de ter sido servida.
Contei-lhe do meu desconforto relativamente ao assunto. Ele retorquiu que, infelizmente, paga o justo pelo pecador, pelo que, para o curso acontecer, as coisas teriam de processar-se daquela forma. E as garantias que me dava - dizia-me - era o seu nome, uma vez que era dele que vivia.
Eu também vivo do meu. Aliás, não vejo quem possa viver do nome de outros (a não ser, claro está, actores ou espiões).
Ainda por cima, Pedro Chagas, embora identificado no Wikipédia enquanto escritor português (?!) - também a Margarida Rebelo Pinto está convencida de que é -  tem um nome que, para além de me ter chagado o juízo, deixou-me a zeros em termos literários.

terça-feira, agosto 24, 2010

Férias à beira de um ataque de Família

A minha mãe parece uma mulher de 70 anos. A minha avó parece uma mulher de 50. A minha mãe tem 51. A minha avó 73.
As férias em família são uma confusão. Ou há pratos que sobram na mesa ou há pratos a mais. Há pessoas a entrar e a sair, num correpio ininterrupto.
Eu gosto. Mas também me agrada o silêncio. Sobretudo aquele que nasce por de dentro. Que forra o interior e o aconchega.
Antes de me habituar ao computador, só gostava de escrever no papel. Agora que me habituei a escrever no computador, não gosto de escrever no papel. Fico mais lenta, os pensamentos de escrita não fluem tão rapidamente. E a letra aparece-me desordenada.
Às vezes gosto da minha caligrafia. Outras não. Uma vez uma professora acusou-me (injustamente) de ter assinado o teste pela minha mãe - de tão parecidas que seriam as caligrafias. O máximo que fiz, ainda que não dessa vez, foi ter alterado um Insatisfaz para um Satisfaz.
Foi aí que me dei conta da diferença que umas palavrinhas podem ter no nosso destino. A minha mãe apercebeu-se da rasura no "In". Castigou-me. E fez muito bem.
A mentira não é tolerável. Embora passemos nela grande parte do nosso tempo: tenho de ser feliz. Tenho de ter uma casa. Um carro. Ter um bom emprego. Ter dinheiro.
A minha avó não sabe ler. Quando vínhamos de Lisboa para Fernão Ferro, disse-me:
- Aquela casa tem uns escritos. É porque está à venda.
A minha avó nunca teve carro. Nem dinheiro. Nem um bom emprego. A casa que agora habita ocupou-a há 35 anos, após a Revolução de Abril. Entrou nela e lá permanece... até hoje.
À sua maneira muito própria, é feliz. Sem computador. Com pouco silêncio. Sem palavras e cem mentiras.

quarta-feira, agosto 04, 2010

Embriagada de palavras

Outro dia disseram-me: tens escrito menos, o que significa que estás feliz.
Ainda que não se deva reduzir a escrita ou a necessidade desta a estados de espíritos, a verdade é que ela  nasce de uma certa inquietude - com o presente, passado ou futuro. Inquietude com os outros, com o mundo ou connosco próprios. 
A felicidade não produz nada de prático, é inebriante e estática, como uma droga que se injecta, fuma ou inala.
Quem nunca sentiu a dor profunda, a inquietude irrequieta, permanente, inexorável nunca viveu a plenos pulmões; logo, desconhece este pendor para as palavras. Esta mania de desenhar o mundo em sílabas.
É verdade que me sinto mais feliz do que outrora. Há uma tranquilidade intransigente instalada aqui.
Mas também é verdade que não consigo hipotecar esta mania de interrogar tudo, todos, sempre.

Quinta do Lago Silencioso

"Ondas azuis, ondas verdes, todas elas se abrem num rápido leque sobre a praia, contornando o pontão coberto por avezinho-do-mar e deixando pequenas poças de luz aqui e ali, espalhadas na areia"

As Ondas,Virginia Woolf

Estou sozinha. Passeio pela praia. Não há muito gente. Ainda há lugares que conseguem preservar a nossa identidade.
O sol acaricia-me com os seus dedos de luz. A minha pele aguenta. Caminho pelo areal imenso, mas não me sinto perdida. Vou em frente, nem mais nem menos.
Tenho medo. Não mais nem menos do que estas pessoas que não conheço e que estão aqui comigo, embora não estejam.
Tenho o livro debaixo do braço. Ter livros para ler acalma-me.
A praia acolhe o bom. Há risos que morrem nas vagas, há euforias que desaguam nas areias e existo eu mais o meu livro. 
O meu pensamento não pára. Não há silêncio que lhe resista. Mais rápido do que eu chega às rochas que me impedem de seguir mais à frente.
Por vezes, gostava de parar o meu pensamento. Não é bom pensar tanto. Há momentos em que me dói a cabeça de tanto pensar.
Está na hora de regressar. O tempo espera-me e o mar está prestes a devolver-me o meu amor.