segunda-feira, outubro 24, 2011

Quem és tu?

Não estou a morrer, afinal.
Ou melhor, afinal, estou a morrer.
Isto na lógica determinista de que todos os que nascem, morrem.
Quntos são todos?
Todos, ora essa. E quando digo todos, são mesmo todos.
A minha doença é de Graves. Disse ela. E eu acredito no que ela disse. Respeitei-a, apesar do nome.
Quem se chama Leonce?
A não ser as figuras patéticas de televisão que num esforço desesperado para a diferença escolhem um nome de pronúncia difícil e de duvidoso bom gosto à filha, ninguém. Ainda que ninguém fosse também nome de alguém. Não de um alguém qualquer. Mas um de coroa e ceptro.
Não estou a morrer. Não há em mim uma quantidade maior de morte do que em outros que por mim passam.
Doença auto-imune, explicou-me. Como se eu não soubesse já. Como se não soubesse que sairia dali com mais medicamentos a tiracolo. Uns brancos, pequeninos, que me atacam assim que me tocam na língua: veneno. Blhac.
 Se pudesse, não os tomava. Quer dizer, eu poder posso sempre, mas isso seria atentar contra mim própria o que, na verdade, já acontece, visto que tenho a tal doença auto-imune. Ainda assim, uma coisa são os meus anticorpos andarem numa de rebelião massiva contra o meu sistema imunológico outra é eu decidir rebeliar-me contra o sistema médico e farmacêutico em prejuízo do meu próprio bem estar. Estupidez, diriam. Estupidez, assentiria.
Confirmações de diagnóstico - diz-me a Leonce - só com a análise aos anticorpos, que será efectuada lá para meados de Novembro.
Olho para ela, com olhos curvados, em jeito de súplica, as análises que fiz não chegam? Terei de fazer mais?
Desconfio que me cansarei rapidamente desta doença de Graves e dos comprimidos pequeninos que trago no bolso, nos dias em que a memória não me atraiçoa - como o de hoje, por exemplo.

Pior do que tudo isto, é viver num país tropical e, mesmo assim, ter de explicar aos alunos estrangeiros o que é a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno, quando num dia estão na Caparica a apanhar sol e no seguinte a calçar as galochas que lhes permitam atravessar a avenida que mais parece o TEJO, ainda que sem barcos.

quarta-feira, setembro 21, 2011

Ó Evaristo, tens cá disto?

Ainda não me tinha apercebido de que não há carros velhos a circular em Lisboa. Só reparei nisso a semana anterior, logo após o acidente que sofri na descida da Pimenteira. Apesar da força do embate, o meu carro ficou a circular, só que em vez de um Peugeot passei a ter um Smart.
Confesso que me senti rídicula a passear pelas estradas com o meu carro em fase terminal. Olhava para o lado e via as viaturas dos outros: robustas, lavadas e sem arranhões; quanto mais feridas abertas, a correr o risco de septicémia.
Lembro-me de ver - não pode ter sido assim há tanto tempo! - carros velhíssimos a passear pela cidade, a chiar de dor.
Onde estão eles? O que lhes aconteceu?
Seremos todos ricos? Seremos todos capazes de sustentar a alarvaria dos carros; seguros, IUC's?
Ou a sociedade contemporânea rejeita tudo o que é velho, defeituoso, enfermo?
Viveremos todos uma espécie de vida e não a própria em si mesma?
Não me imagino a ser feliz num lugar onde tudo funcione, seja novo e imaculado.
Ergui o rosto e enfrentei a multidão de viaturas límpidas, imberbes. O meu carro tinha, pelo menos, uma história para contar...

terça-feira, setembro 20, 2011

Da doença e das suas consequências

Estou doente...
Não há nada de mais inútil (e deprimente também) do que a doença. E eu detesto tudo o que seja inútil.
Há muito tempo que não ia ao médico; evito aquele ciclo vicioso de diagnóstico-terapêutica-medicação. Aliás, não tomo químicos - decisão que me acompanha há alguns anos. Julgo que depois de ter assistido à degradação física da minha avó paterna, que morreu com uma cirrose provocada por medicamentos. Antes tivesse bebido até à morte. Ter-se-ia divertido muito mais e sofreria exactamente o mesmo, uma vez que foi vomitando o fígado aos poucos. Ainda me lembro de ver a minha mãe de joelhos, com um pano apontado a pedaços de carne ensaguentada e de ver o líquido escorrente dos lábios da minha avó, que já não tinham cor.
Não tenho medo de morrer. Disse-o várias vezes. Não me assusta o vazio do nada. Assusta-me, isso sim, dizer adeus. Não à vida, mas às pessoas que são a minha vida.
Não estou a morrer, ou pelo menos, não me parece que assim seja. Mas sou incapaz de interpretar a vida como um dado adquirido, como qualquer coisa de interrupção difícil ou adiável. Morrerei quando morrer.
Enfim, fui ao consultório médico com sintomas de anemia - confirmada depois de umas quantas análises sanguíneas -, e saí de lá com ela, com um hipertiroidismo, mais comprimidos de ferro, mais hemogramas, mais ecogrfia à tiróide e consulta de endocrinologia. As idas ao médico parecem-me avalanchas - um sintoma pequenino acaba por reduntar numa massa disforme e descontrolada de doenças que nem sequer ouvíramos falar.
Uma coisa é certa, estou hoje um pouco mais rica em termos vocabulares: aprendi uma palavra nova e os seus efeitos: decréscimo de peso - devo ser a inveja de umas quantas mulheres! -, perda de cabelo, descamação da pele, arritmia cardíaca  e cansaço generalizado.

terça-feira, agosto 30, 2011

19 de Agosto em 30 de Agosto

prometi-te um poema e não tinha, até agora, cumprido essa promessa.
como sei que há coisas que não acontecem por acaso, no dia anterior ao teu aniversário, estava sentado no sofá, de comando na mão, e passava negligentemente canais sem dar grande importância ao que era transmitido. até que fiquei, sabe-se lá porquê, a assistir a um filme sobre irmãs. o filme estava a terminar e uma delas dedica um poema de E. E. Cummings à outra. inevitavelmente, nesse instante, soube que aquilo era o que eu tinha para dizer-te. nem mais nem menos. aquilo. isto.


I carry your heart with me (i carry it in

my heart) i am never without it (anywhere

i go you go, my dear; and whatever is done

by only me is your doing, my darling)

I fear

no fate (for you are my fate, my sweet) i want

no world (for beautiful you are my world, my true)

and it's you are whatever a moon has always meant

and whatever a sun will always sing is you



Here is the deepest secret nobody knows

(here is the root of the root and the bud of the bud

and the sky of the sky of a tree called life; which grows

higher than the soul can hope or mind can hide)

and this is the wonder that's keeping the stars apart



I carry your heart (i carry it in my heart)





sábado, junho 11, 2011

Passeio pelo passado

Andei a vasculhar no passado. Numas folhas amareladas, gastas, que a minha mãe ainda guarda lá por casa, numa gaveta apinhada de memórias antigas.
Não foi um regresso pacífico, embora tenha sido emocionado e emocionante.
Andei, mais propriamente, a vasculhar as minhas fichas avaliativas referentes à primária e aos primeiros anos do básico. Não é que aquelas fichas me tivessem despertado ou alertado para alguma coisa que eu já não soubesse sobre mim, apenas vieram reforçá-lo ou clarificá-lo dolorosa e dolentemente.
Embora não consiga recuar aos primeiros dias de escola, lembro-me de ouvir os relatos da minha mãe sobre o choro e a agonia que me assaltavam de cada vez que ela me virava as costas ou, pior, me largava a mão. A sensação de abandono e de desconforto conheço-a muito bem. Ainda hoje sou assaltada por ela  em variadíssimos momentos.
Não há uma avaliação, em qualquer dos anos, em que não apareça escrita a palavra insegura: "A Sónia é uma criança insegura."; "Muito insegura, a Sónia precisa ainda de..."
O medo de não ser capaz, de não ser suficientemente boa para mim e para os outros, o medo de ser julgada, o medo de ser rejeitada, o medo de não ser amada, o medo de enganar e ser enganada, o medo de ficar só, o medo, o medo, o medo, o medo, o medo...
Estranhamente, e por contigências do acaso e do destino, este medo nunca foi um agente paralisador, antes pelo contrário,  foi um autêntico activador de vontades.
A minha insegurança congénita não me paralisa, obriga-me a avançar e sempre de encontro a lugares maiores, maiores, até, do que eu própria.
Ainda assim, continuo a ser aquela menina atemorizada com a dimensão da sala de aula e com o excesso de vozes e bocas. Demasiadas, excessivas para conhecer e confiar.
Continuo a ser aquela menina que aguarda pela mão que a guiará, enfim, ao lugar de consolo.
Consolada. Não mais sozinha. É o que desejo, em cada dia, que me suceda... 

sexta-feira, junho 03, 2011

Branco voto?!

Nunca, como hoje, estive tão longe de decidir em quem votar.
Nunca, como hoje, tive tanta consciência de que o meu voto pode fazer a diferença.
Nunca, como hoje, senti a dor virulenta de ver Portugal como um país à deriva.
Gostava de ter a resposta pronta na ponta da caneta no domingo, mas desconfio que isso não sucederá. A culpa - se é que me permitem colocar a coisa a este nível - é da clara incompetência dos políticos que se passeiam na praça pública. 
Sinceramente, nunca, como hoje, estive tão certa de que escolher PS ou escolher PSD é escolher entre o mesmo ou mais do mesmo. Entre falsos engenheiros e economistas tardios. Entre mentirosos compulsivos e inábeis mentirosos. Entre experiência maliciosa e  inexperiência insidiosa. Basicamente, escolher Sócrates ou escolher Passos Coelho - perdoem-me os mais sensíveis -  a merda é a mesma. Só o cheiro muda.

sábado, maio 28, 2011

A árvore de Malick

Tudo tem um princípio. 
Mesmo que não o conheçamos ou saibamos como se processou (onde, quando) estamos certos de que ele se deu.
No início não era o verbo. Era o Universo de si para si. Só muito tempo depois veio o Homem e com ele o Verbo.
Malick prova-o. Melhor, concretiza-o visualmente em The Tree of Life.
Com uma respiração muito própria, o filme transporta cada um dos espectadores para o espaço íntimo, até secreto, do início. Primeiro numa perspectiva macro - o Universo, a Terra, a Humanidade -, para logo dirigir a objectiva para a micro vivência da família, bem como do indivíduo.
Não é um filme simples nem fácil. Não é um filme de consumo imediato ou rápido. Houve pessoas a abandonar a sala de cinema poucos minutos depois das primeiras imagens. Parece-me que a maioria do público tem dificuldade em digerir ou consumir os produtos - sejam eles quais forem - devagar. Como se o tempo não tivesse tempo para ser tempo. Como se tudo o que demore mais do que o tempo esperado seja  tempo a mais. Tempo demais. Por demais. Não foi. Não é.
Na vida, há sempre dois caminhos. Cabe a cada um de nós optar por um deles.
Eu escolhi permanecer sentada, de mente e coração abertos, deslumbrada com o universo malickiano que, afinal, não é um universo alheio, estranho ou irrealista.
A história que se conta - porque há uma história que é contada - não é muito diferente da de cada um de nós. Nesse sentido, há, de certa forma, qualquer coisa catártica que irrompe, melhor, um voyeurismo que assenta num passado que é humanamente comum: pai. mãe. irmãos. nascimentos. primeiros passos. curiosidades satisfeitas e insatisfeitas. perguntas por fazer. por responder. mentiras. fé - a que se tem, a que se perde e a que se recupera. E, acima de tudo, a escolha primordial - o caminho da graça ou o caminho da natureza, que significa, sobretudo, escolher os outros ou escolhermo-nos a nós mesmos. 
Vale a pena arriscar Brad Pitt e Sean Penn.

sábado, maio 07, 2011

A bela adormecida

Há coisas tão simples que são, exactamente ao mesmo tempo, surpreendentes e inexplicáveis.
Um dos meus alunos estrangeiros do curso de Português que lecciono no ISA deixou-me uma mensagem inacreditavelmente bela no facebook. Não sei quanto tempo aquela mensagem ficou por ler, afinal, não sou facebooker assídua ou facebooker dependente. Ainda assim, foi capaz de me acordar de um sono em que estava belamente adormecida...

quarta-feira, maio 04, 2011

Carta aberta ao LV neste seu aniversário

Acordou-me com a sua mensagem.
Depois de ler o seu nome no écran do telemóvel, pensei: "hoje devia ter sido eu a surpreendê-lo. por uma vez, gostaria de surpreendê-lo!"
É inútil pensar que se pode, assim sem mais nem menos, arrancar um homem que vive profundamente consigo próprio, afastado de qualquer mundanice, empenhado em ouvir os ecos da sua - riquíssima - vida interior, e  trazê-lo um pouco para o lado de cá, para o lado dos comuns mortais e dizer-lhe coisas tão simples como: "gosto tanto de si"  achando, ainda por cima, que isso poderia ser o bastante.
Dizer nem é difícil, acho que nunca senti medo de dizer o que sinto - mesmo correndo o risco desse sentimento ser tão passageiro com o vento que passa -, para mim, guardar palavras dentro é engolir sapos de enfiada, indispõe-me contra mim e contra os outros que estão fora de mim.
Difícil, difícil é arranjar a forma certa, o momento certo de dizê-lo.
Não há mais ninguém que eu conheça que acorde a ouvir Mahler às cinco da manhã. Não há ninguém que eu conheça que me ofereça um presente no dia do seu próprio aniversário. Só o LV.
Deixe-me que lhe diga que não é justo inverter desta forma a ordem do jogo - desculpe, mas foi exactamente assim que o senti. Isso e uma profunda alegria por ter sido eu a escolhida. Ignoro, até hoje, a razão da sua escolha, mas não me atrevo, sequer, em duvidar dela. Aceito-a como aceito boa parte das coisas boas que me acontecem: em euforia comprometida.
Irrita-me tudo o que não fizemos juntos - as idas à cinemateca prometidas e não cumpridas; os filmes, os livros, as músicas que prometemos desfrutar um com o outro... em silêncio e entendimento; os passeios por Lisboa, a famosa ida a Cerveira. Falta-me isso para cumprir a nossa amizade, ainda que tenha uma série de outras memórias de si, de nós, de ambos juntos em sintonia e cumplicidade.
Sabe, por ventura, que o primeiro livro de Benedetti que li foi aquele que me enviou? Sabe, por exemplo, que nunca ninguém teve a agilidade mental de me explicar os fundamentos da Física Quântica como um dia me explicou - entre quatro paredes de uma sala, em Outeiro de Polima, que diz guardar na sua memória?
Encontro-me a ler Memórias de Adriano e acredita que aquele livro me leva continuamente para si?
Quer que lhe prove?
"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que, pela primeira vez, se lança um olhar inteligente sobre si mesmo: as minhas primeiras pátrias foram os livros." - porque me lembra esta frase de si? Porque escolheu nome e pátria. Quem pode fazê-lo? Eu própria, se pudesse, teria escolhido outro nome. Não sei se pátria. Não pude e acho que nem saberia. Não é qualquer pessoa que pode fazê-lo, nem pensar.
Quer outro exemplo?
"Há um único ponto em que me sinto superior ao comum dos homens: sou ao mesmo tempo mais livre e mais submisso que eles se atrevem a ser." - podia continuar, mas não vou maçá-lo com a ideia que tenho de si que será infinitamente mais pobre daquilo que realmente é. Mas quero que saiba que a sua vida me comove como nenhuma outra e eu sinto-me grata por fazer parte dela - ainda que com os condicionalismos que a distância impõe; embora só eu não conviva bem com a distância, como já lho disse tantas vezes.
Parabéns neste dia. Parabéns, parabéns, parabéns, parabéns. E lamente a minha terrível falta de capacidade para surpreender quem já não deseja (sabe?) ser surpreendido.

Com amor,

Sónia

terça-feira, maio 03, 2011

Mulheres precisam-se!

Na revista Única, suplemento do jornal Expresso, deste fim-de-semana foi publicado um trabalho sobre os 100 portugueses mais influentes. Embora pudesse discutir a presença de uns em detrimento da de outros - considerar os Deolinda ou o João Manzarra figuras influentes será, no mínimo, passível de discussão -, venho mostrar a minha indignação pelo facto dos rostos femininos serem tão poucos em comparação com os masculinos. Isto só pode significar duas das coisas seguintes coisas: ou as mulheres, em Portugal, continuam a esconder-se por detrás dos homens ou vivemos, ainda, num obscuro e sinistro mundo masculino...

segunda-feira, maio 02, 2011

A casa dos sonhos

Há um sonho que tenho recorrentemente.
Nesse sonho, há uma casa - que eu sei que é minha - grande, espaçosa, arejada, mas muito, muito suja; nem se percebe as cores das paredes, de tão suja que está. Durante o tempo do sonho - que não coincide com o tempo real, nem com o tempo da história do sonho, na verdade, nem tempo é - não me sobra tempo para pôr tudo em ordem, pelo que ando sempre atarefada, a correr, para avançar na limpeza e na arrumação. A questão é que, por mais que me esforce, sempre que volto ao sonho e, por inerência, àquela casa, está tudo exactamente na mesma. Curioso é também que, apesar da ansiedade da limpeza e da ordem, sinto-me feliz por ser dona daquela casa, sinto-a como uma conquista minha, própria, qualquer coisa da qual devo sentir orgulho.  
Hoje, porém, aconteceu algo novo no sonho:  enquanto conversava com alguém - que não me lembro quem - contava-lhe que costumo ter um sonho muito frequente; um no qual tenho uma casa grande, espaçosa, arejada, mas muito, muito suja e que não consigo terminar de limpar, à semelhança desta em que me encontro agora. Ou seja, no meu próprio sonho, sonhei com aquela casa. É como se tivesse transportado para o sonho matéria da minha realidade que, por sua vez, a é por via do que sonhei. Já me perdi em exercícios de interpretação do que poderá representar aquela casa no meu inconsciente, mas não cheguei a uma conclusão definitiva. Talvez nem seja possível chegar.
A casa dos sonhos deve manter-se intraduzível e inexplicável, afinal, é só pela razão dessa ineficácia interpretativa que os sonhos são elementos tão vitais na vida de qualquer ser humano. Na minha inclusive.

domingo, maio 01, 2011

Pelos cabelos com o dia da Mãe

Cabelos. Gosto deles compridos, femininos, pouco alinhados, cheirosos.
A minhã mãe mentia-me a cada ida ao cabeleireiro. Dizia-me, com a sua voz doce e confiante de mãe, que não iria cortar-me o cabelo curtinho. Eu fazia o que as filhas fazem, acreditava naquilo que a sua voz doce e confiante dizia.
Chegávamos ao salão, caminhando lado a lado, ela mãe, eu filha.
Sentava-me direitinha num dos sofás disponíveis e esperava que a minha mãe dissesse ao que vínhamos: cortar o cabelo, mas não muito curto, porque se ele estiver muito curto pareço um rapaz e nenhuma miúda quer parecer um rapaz, sobretudo, quando tem um nariz grande e um primo com o qual costumam confundir.
A minha mãe olhava para a cabeleireira - chamava-se Isabel - e dizia-lhe a sorrir não é  para curtar muito curto. Eu via pelo espelho que a minha mãe sorria enquanto dizia o que dizia e, ao mesmo tempo, fazia um gesto com a mão em direcção ao seu próprio cabelo a contrariar o que tinha acabado de sair da sua boca. Os seus dedos transformavam-se em tesoura, eu eu via, pelo espelho, os olhares cúmplices trocados entre a Isabel e a minha mãe.
Já sabia... mesmo antes de me sentar na cadeira preta almofadada, que os meus cabelos, que tinham crescido relativamente bem, iam transformar-se em pelos inanimados atirados contra o chão e eu passaria a ver-me como uma miúda com dificuldade em ser reconhecida como tal. Sabia que as bocas dos familiares viriam mais afiadas do que nunca - Pinóquio era o meu petit nom - e as vizinhas e conhecidos ririam ao perguntar-me és o Tiago ou a Sónia?
Hoje, detesto cabeleireiros em geral. Não sei se por remanescer em mim aquele gosto de confiança traída. Evito-os e escolho-os a dedo. Tal como às tesouras. A minha frase mais dita em qualquer cabeleireiro é só para acertar as pontas - morreria de vergonha se me chamassem novamente de Pinóquio ou se me confundissem com o meu primo.
Há uma coisa, porém, que mantenho sempre que possível: chegar ao salão, lado a lado com a minha mãe, ela mãe e eu filha...

quinta-feira, abril 28, 2011

Dá-me música

Gosto de regar a minha actividade profissional com boa música. Ultimamente selecciono-a do programa da TSF, A Playlist de..., uma vez que o meu computador não lê CD. O Windows Mediaplayer avariou-se... para mal dos meus pecados.
Já na altura em que fazia revisão de texto, lembro-me que procurava o silêncio - indispensável para a concentração e a focalização no erro e na agramaticalidade do discurso escrito - no grito melodioso da música.
A Playlist de... é um programa em que distintas personalidades seleccionam músicas que depois partilham com a audiência .
O que o programa tem de interessante é o facto de, por um lado, dar a conhecer  os gostos musicais das pessoas convidadas e, por outro, permitir que o ouvinte se distancie ou se aproxime daqueles.
Por exemplo, assim que ouvi a selecção musical do José Luís Peixoto tive a certeza absoluta de que não há qualquer coincidência na nossa emotividade musical. E eu pensava que sim, até porque sempre gostei muito da maior parte das coisas que ele escreve (como se uma coisa estivesse relacionada com a outra) - a excepção vai para algumas crónicas e para o último romance que nem consegui terminar: Livro.
No lado oposto está, por exemplo, o Rodrigo Leão. Estava capaz de ouvir, em repeat, a sua selecção musical, vezes e vezes sem conta.
A dar razão ao Rui Veloso, Rodrigo, pode pedir-me em casamento que será, com toda a certeza, uma união feliz!

Nota: Aos curiosos, experimentem clicar no título e acederão à playlist do Rodrigo Leão. Boa viagem!

sábado, abril 23, 2011

A família está bem?

Família. Já não é o que era. E ainda bem?!?

Vi The Kids Are All Right, um filme de Lisa Cholodenko, com as belíssimas Julianne Moore e Annette Bening.
Aquilo que mais apreciei no filme foi aquilo que também mais apreciei no Brokeback Mountain, de Ang Lee - a seriedade, a integridade e o respeito com que é abordada a temática homossexual.
Lisa e Ang provam que falar do amor entre pessoas do mesmo sexo pode  - e deve - processar-se em moldes semelhantes de quando se procura falar do amor entre pessoas de sexo diferente.
Julianne e Annette são casadas há mais de 20 anos e vêem-se a braços com aquilo que um casamento longo normalmente proporciona: invisibilidade.
A chegada de um elemento exterior - Mark Ruffalo - obrigará a que a família (composta por dois filhos adolescentes - Mia Wasikowska e Josh Hutcherson) rasguem o manto da invisibilidade e, por assim dizer, o da inocência.
Os dramas retratados neste filme não são diferentes dos dramas pelos quais passam famílias de todo o género: o desgaste relacional, a diferença de opiniões quanto à orientação educacional dos filhos, os vícios de personalidade, as expectativas goradas, o crescimento interior que se processa contra aqueles que nos são próximos, a desilusão. E o remédio que acalma todos os males também não anda longe da realidade mais próxima: sexo, mentira, decepção, raiva, muita raiva, assunpção de culpas e responsabilidades e perdão - só possível deixando que o tempo faça aquilo que melhor faz: passe!
Impressionou-me a interpretação do Mark Ruffalo e da Mia Wasikowska - que interpretou Alice no Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton - não vi, mas depois desta interpretação, apetece-me muito vê-lo.

As famílias já não são o que eram e... ainda bem!

segunda-feira, abril 18, 2011

Objectivo de hoje

Desistir.
Fugir de tudo e de todos.
Transformar-me numa mariposa de asas azuis e voar para bem longe daqui.
(Por mais que estenda a minha pele aos pés de certos e certas, nunca é suficiente. Fico sempre aquém.)
Isto de procurar ser mais em tudo o que se faz, extenua-me.
Por isso, desistir.
Fugir de tudo e de todos.
Transformar-me numa mariposa de asas soltas e livres, desaparecer de encontro ao promontório.
E morrer de alegria só com a ideia de encontrá-lo.

Esquisitices

Gosto da força da palavra ALCACHOFRA.
Gosto do som da palavra ALCACHOFRA.
Se tivesse de eleger a palavra portuguesa mais perfeita de todos os tempos, elegeria ALCACHOFRA.

domingo, abril 10, 2011

Viagem

Almada. Ponte 25 de Abril. Lisboa. A1.

Porto. Ponte do Freixo. Freixo. Batalha. Engano.

Batalha. Boavista. Rotunda. Portus Cale. Metro. Trindade. Loucos. Boavista.

Boavista. Freixo e Freixo. Foz. Praia da Luz. Velas. Rochas. Mar. Boavista.

Boavista. Freixo. A1. Lisboa. Ponte 25 de Abril. Almada. Ponte 25 de Abril. A5. Cascais.

O melhor de todas as viagens: o regresso.

segunda-feira, abril 04, 2011

Direito à vida, mas também ao amor

O amor não é um direito que se adquire à nascença (embora devesse sê-lo).


Aproveito o fim-de-semana para visitar os meus pais e os meus avós com tempo. Tenho a sorte, ainda por cima, de viverem - uns e outros - muito próximos, não na mesma rua, mas no mesmo bairro. Aliás, falar daquele bairro é falar de mim: o meu "eu" fez-se nas suas ruas, nas suas pracetas, no seu ringue.
Velho, muito velho, tem o antigamente inscrito nas paredes caducas. A igreja, que fica no átrio, ao contrário do edificado, é moderna, tem paredes de cimento e não parece sequer uma igreja. Não creio que deus venha comungar com os fiéis naquele lugar. Assim é que, não só serve para o culto das velhinhas que por ali se movimentam com dificuldade, mas também para os toxicodependentes fazerem as coisas que os toxicodependentes fazem: aumentar a sua dependência dos tóxicos.
A sorte é que as horas de culto e as outras não coincidem, pelo que a harmonia dá-se (na maior parte do tempo, pelo menos naquela em que a PSP não é chamada a repor a ordem e o sossego dos habitantes).
Poderia escrever uma história sobre cada um dos prédios que compõem o ramalhete do meu ex-bairro. Eles guardam no silêncio das suas paredes recaiadas relatos de tudo e mais alguma coisa - maridos que se enforcaram, filhos que esfaquearam pais, irmãos que casaram entre si, pais que molestaram filhas deficientes, homens enlouquecidos, mães que perderam filhos, como disse: tudo.  
Também há pessoas que sempre viveram envoltas num mistério indecifrável. Pessoas cujo entendimento escapava à maior parte.
No sábado, cruzei-me com uma dessas pessoas: cabelo comprido, grisalho, roupas circenses, atiradas contra a magreza de um corpo que deixou a agilidade uns anos antes à porta da juventude, brinco nas narinas, o andar ligeiro, arrastado.
O meu avô, que me acompanhava, perguntou à figura que acabei de descrever se estava melhor - ali, no meu ex-bairro, as pessoas ainda se interessam umas pelas outras, há a simpatia da pergunta e o fingimento do interesse:
- Cá ando, Sr. Carlos. Cá ando. Estou muito só.
Não parou, disse aquilo com o mesmo tom, a mesma inevitibilidade com que diria qualquer outra coisa menos chocante ou mais banal.
Não esqueci, até hoje, as palavras ouvidas.
O amor não é um direito que se adquire à nascença (embora devesse sê-lo). Há pessoas que vão morrer sem nunca terem tido a sorte de serem amadas (devidamente) por alguém - o direito à vida deveria implicar o direito ao amor.

sexta-feira, março 18, 2011

O que escapa...

Para os que duvidam que a literatura é dispensável:

"Um homem que lê, ou que pensa, ou que calcula, pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores momentos escapa mesmo ao humano. Mas as minhas amantes pareciam orgulharem-se de pensar somente como mulheres: o espírito ou a alma, que eu procurava, ainda não era mais do que um perfume."

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, Editora Ulisseia: 7.ª Edição (pág. 57)

quinta-feira, março 10, 2011

Porque sou deste tempo

Porque não sou politicamente activa.
Porque não acredito na política.
Porque não confio na classe que supostamente me representa na Assembleia.
Porque desconfio dos interesses que sustentam as decisões tomadas.
Porque recuso manifestações de rua.
Porque não me reconheço na chamada "geração rasca", "deolindas" e que tais.
Porque não me sinto motivada a participar numa "revolução" em que os arautos, em plena entrevista televisiva, dizem "as percas financeiras" em vez de "as perdas financeiras".

Reconheço que estamos numa época de transição, em que as mudanças, mais do que desejáveis, são imprescindíveis, mas assusta-me que as pessoas acreditem que a transição ou a mudança se faça pelo caos e pela desordem.
Por enquanto, acredito no sistema democrático e, consequentemente, nas escolhas decididas em tempo de eleições. As últimas legislativas deram a vitória ao PS, as últimas presidenciais, ao Cavaco Silva.
Goste-se ou não se goste, este é o panorama existente, pelo que a mudança, a ocorrer, terá de desenvolver-se neste quadro. Mais do que isto, é agir contra Portugal.

quarta-feira, março 09, 2011

O apego não quer ir embora/ Diaxo, ele tem que querer

Os acasos podem ser enriquecedores, apesar de ocorrerem com abundância nas nossas vidas. Aliás, cá para mim, a vida é mesmo uma sucessão de acasos.


Então, exactamente por acaso, esbarrei com a Maria Gadú este fim-de-semana e fiquei boquiaberta com a sensibilidade que é transmitida pela sua voz de apenas 24 anos. Voz jovem, é certo, mas um instrumento maduro e intenso quando se trata de veicular sentimentos e emoções.
Ouvi "Dona Cila" e, por acaso, pensei imediatamente no meu sobrinho e na dificuldade que sente em aceitar o seu tom de pele. Ele diz que é feito "de chocolate", mas deve ser de chocolate amargo, tal é a tristeza que manifesta em não ser feito "de leite" como TODOS os familiares que com ele convivem diariamente.
Os mulatos vivem numa realidade ambivalente, mais rica - com certeza - mas também mais confusa: não são negros e não são brancos. Acabam por estar num e noutro lado ou em parte alguma?
Embora reconheça que as sociedades deram passos significativos no sentido de integrar e aceitar a diferença, um negro continua a ser um negro, mas um mulato... o que será?

quinta-feira, fevereiro 24, 2011

Momentos

Abraçado a mim, numa altura em que ambos estávamos no sofá, disse-me:
- Acho que a maior parte dos meus colegas não tem este tipo de momentos com os pais.
Na altura, comovida com a grandeza do seu comentário, não lhe dei muita importância, entendi que ele teria de considerar aqueles momentos naturais, sobretudo, entre pessoas que se amam.
A verdade, e não posso ignorá-lo pelo dever de humildade, é que percebo que o meu filho não é um adolescente comum de 14 anos. Não é. E isso agrada-me. Descansa-me.
Mais do que sucesso profissional, desejo que ele seja capaz de fazer as suas próprias escolhas. Não há nada que me angustie mais do que a "rebanhisse" instalada. Se uns dizem que gostam, todos gostam. Se uns dizem que não gostam, ninguém gosta. É uma mímica enfadonha e apática.
Conto com ele para fazer a diferença que eu, tantas vezes, não fui capaz de impor.

quarta-feira, fevereiro 23, 2011

Mundo ao contrário

De cada vez que oiço o noticiário, envergonho-me. Não só com a política mas com a qualidade dos políticos.
Agora sabe-se que os da França se aproveitaram da amabilidade de alguns ditadores - cujas opções começam a ser contestadas nas ruas - a fim de gozarem de privilégios de ricos, em tempo de lazer: aviões particulares, barcos, etc.
Não entendo, se eu pago pelas regalias pelas quais opto em dias de férias, por que razão os políticos vivem impunemente de favores concedidos à custa do sangue, do suor e das lágrimas de milhares de pessoas que morrem devagar ao servirem de sustento de contextos sócio-políticos inibidores de liberdade e de direitos?
Viveremos nós num mundo ao contrário?
Num mundo em que os maus não têm, afinal, o castigo merecido?

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Os gordos que querem ser magros e os magros que têm de ser gordos

Os estereótipos são uma carga adicional ao percurso de vida do ser humano, carga que, tantas vezes, não corresponde em nada àquilo que o indivíduo realmente vale/é/merece. Nas mulheres, essa carga aumenta exponencialmente - porquê? Porque além de bonitas, têm de ser magras. Mesmo que a natureza/genética contrarie o ideal estabelecido, há que recorrer a tudo o que estiver ao alcance para repor a ordem - dietas líquidas, mediterrâneas, as que só se pode comer sopa, as que só se pode beber chá, aquelas em que se come apenas fruta, as que se pode comer de tudo, enfim, são inúmeras as oportunidades e hipóteses no mercado para adquirir a silhueta das  raparigas fantásticas que aparecem na televisão, seja em filmes seja em campanhas publicitárias. E se as dietas não resolverem, há ainda os comprimidos ou o recurso à cirurgia (esta última hipótese é normalmente a primeira escolha das mulheres com carteiras mais recheadas).
Desconhecia por completo que, em determinadas sociedades, o culto da magreza não só não existe como o ideal feminino se consubstancia na gordura. De tal forma a gordura é sinónimo de prosperidade e fortuna que as mães aplicam uma dieta "ao contrário" às  filhas de 7/8 anos, preparando-as para o casamento. Esta dieta "ao contrário" consiste em alimentá-las à força, obrigando-as a ingerir quantidades absurdas de comida para engordarem ao ponto de se apresentarem apetecíveis ao futuro marido e, desta forma, não envergonharem a família. A mulher magra é  proscrita. Não serve para casar porque não alimenta o estereótipo de boa parideira.
A técnica de "engordanço" é conhecida por gavagem. E a esta técnica associa-se um método de tortura que consiste na colocação do pé da criança que se quer forçosamente alimentar entre dois paus que servem, por um lado, para imobilizá-la e, por outro, para causar-lhe dor a cada recusa de alimento.
O choro e o desespero que vi em algumas crianças da Mauritânia, nas quais eram infligidos tais tratos, não é muito diferente do choro e do desespero pelo qual muitas crianças ocidentais passam em virtude do olhar de desprezo e nojo que os outros lhes dirigem apenas por serem gordas.
Não consigo decidir qual a tortura mais odiosa, se a primeira se a segunda...

segunda-feira, fevereiro 14, 2011

Mayday

Enquanto casalinhos trocam presentes de pelúcia avermelhados e com palavras que, tantas vezes, nem o significado entendem, a chuva cai insistentemente, ao ponto de me encharcar os pés.
Enquanto casalinhos fazem juras de amor eterno, lembro-me que o meu carro precisa de ir à oficina porque não tem um médio.
Enquanto os namorados gastam horas ao telefone, irrito-me a pensar nas horas que não me sobrarão para ir ao supermercado comprar legumes para fazer uma sopa logo à noite.
Entre abraços, beijos e "para sempre" gravados nos olhos dos casalinhos, só me lembro que este fim-de-semana passou a correr e que deixei a cozinha em estado de sítio tal que talvez vá ter de reiventar um local onde, hoje, possa jantar.
Entre amor e mais amor, vendido até às pontas dos cabelos,  bocejo.
Com os pés gelados, sem médio no carro, sem legumes para sopa, com a cozinha transformada em caos, com o enfado tradicional das segundas-feiras, hoje, decididamente, não é um bom dia...

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

Posso desistir de tudo, mas nunca de compreender

Não vou com frequência assistir a bailados, mas vi, há tempos, o Baile dos Cisnes, por uma companhia russa: não gostei. Na verdade, já tinha apagado esse bailado da minha memória até ao momento em que vi Black Swan, de Darren Aronofsky.
Não sou nenhuma crítica de cinema, nem o que escrevo sobre os filmes tem a pretensão de  forjar qualquer crítica, mas há filmes que me "obrigam" a escrever sobre eles, na verdade, acho que escrevendo sobre eles é sobre mim que escrevo.
A história de Black Swan centra-se na bailarina Nina Sayers, ou melhor, nos lados que compõem  Nina: o da pureza quase virginal e o da sombra vibrante e purgada.
A história leva-nos aos lugares da sua vida vivida e da sua vida imaginada, mas nem uma nem outra são amplamente desveladas. Apesar de me inquietar, gosto quando os filmes não me dão tudo o que eu exijo saber para compreendê-los. Há, nisso, a possibilidade de também eu acrescentar qualquer coisa à narrativa que progride.
O que é extremamente interessante na tessitura do Darren é que ele reúne factores não só na história da Nina e das personagens (?) que ela encarna, enquanto prima ballerina, mas da própria realidade. Por exemplo, não é  factual que seja a Winona Ryder a fazer o papel de bailarina preterida, num filme em que se assiste à consagração da Natalie Portman.
Se ao início, o filme parece conter uma história dentro de outra história, rapidamente percebemos que não há duas ou mais histórias, mas apenas uma: Nina é o cisne branco, o cisne negro, o príncipe, o feiticeiro - ela é a representação arquetípica da mulher moderna. Não, da sociedade moderna doente e esquizofrénica.
Há uma lição inevitável a retirar do filme: a mente do Homem é uma arma letal.


sexta-feira, janeiro 28, 2011

28/34

Carrossel. Para cima. para baixo.
De cima vêem-se os montes. Toca-se o céu. Ou aspira-se a isso.
Em baixo tudo é escuro e frio. Há incertezas embrulhadas em desespero.
De cima, as coisas são mínimas, pequeninas, quase imperceptíveis: minúsculas.
Em baixo, as coisas agigantam-se, atemorizam, intimidam.
Caí do alto, lá, onde segurava o azul e a luz.
O trambolhão causou-me feridas pequeninas, invisíveis, daquelas que doem lancinantemente.
Olho para cima, mas tudo é tão grande, tão difícil de apanhar.
Por ora, sento-me na escuridão à TUA espera.

quarta-feira, janeiro 26, 2011

Ficou vazio o teu lugar à mesa

Mundo. Europa. Portugal. Lisboa. Cascais. Parede. Madorna. Rua 25 de Abril.
Eu. Pai e Mãe. Avós. Bisavós. Trisavós. Família. Humanidade.

Vi-te e o meu mundo ruiu.
Habituada a olhar-te são, libertário, selvático, veio agora a realidade repor uma nova ordem, imposta pela velhice e, sobretudo, pela doença.
Fraco, debilitado, frágil, numa luta desonesta contra o tempo.
Tens uma bomba-relógio dentro do teu corpo, alojada com carácter definitivo e não há nada que se possa fazer contra isso.
Gostava de salvar-te da dor, como outrora me salvaste das agressões de escárnio com que os outros nos saudavam prontamente.
Eu e tu somos iguais - dizias-me. E eu acreditava.
Era à hora de almoço e de jantar que essa cumplicidade se tornava mais óbvia: tu ocupavas o lugar de topo, eu sentava-me imediatamente à tua direita. Eras o capitão e eu o teu co-piloto.
O navio paira agora sobre águas revoltas, turvas. Eu já não me sento à tua direita e tu já não ocupas o lugar de topo à mesa. Aliás, nem mesa existe por estes dias. Nem mesa, nem sala, nem casa. Nada.
Lembras-te de me chamares ao teu quarto para ver as tuas coleções de moedas? As tuas colecções de isqueiros?
Um dia, distribuíste um saquinho de moedas de prata, do BPI, a cada um dos 13 netos: a nossa herança.
Desconfio que aquelas moedas servirão, no futuro, para lembrar-te como me lembro agora. O teu rosto bem definido, sob o calor das minhas mãos: pensei que morria, as dores eram tantas.
Há lágrimas aqui dentro. Lágrimas que não posso, nem quero, silenciar. São tuas. São nossas. Entendo-as como um hino ao nosso amor tão próprio. Ao nosso amor que floresceu numa casa que tinha mesa, um lugar de topo e um à  direita. O navio que segurávamos entre os dedos e que foi paisagem da minha adolescência.
Sentirei a tua falta, avô. Capitão de uma família destroçada, vagueando no vazio que a tua partida se limitará a concretizar...

domingo, janeiro 23, 2011

Sombras eleitoralistas

Pensei em ir votar. A sério que pensei. Mas a qualidade dos canditatos presidenciais, ou melhor, a falta dela, impediram-me de fazê-lo.
Não votaria em Cavaco Silva. Um presidente que prefere calar do que revelar o que pensa; um presidente que opta pela promulgação de determinados diplomas quando, pelo seu discurso, advinhamos que preferiria o veto; um presidente que ameaça o país com a subida de juros se a eleição não se cumprir à 1.ª volta, é um presidente que não me interessa, não me move, não me representa.
Os outros, bem, os outros foram uma nulidade gritante. A própria campanha foi de extrema pobreza. Não houve qualquer debate de ideias. Limitaram-se a esgrimir um argumentário gasto e vazio.
Quem acredita que Cavaco Silva saiba o significado de "povo" quando diz "povo"? Ou quem acredita que Fernando Nobre saiba o que é "fome" quando fala de "fome"? E Manuel Alegre saberá, na verdade, o que significa ser "isento" ou "independente"?
O meu voto de protesto fez-se no momento em que optei pela abstenção. E, ainda assim, não me deixo de sentir triste com essa opção...

quarta-feira, janeiro 12, 2011

Mãe

Bastaram o sopro das suas palavras para me despertar quase instantaneamente:
- Mãe... - foi tudo o que disse, às 05.30 da manhã.

terça-feira, janeiro 11, 2011

Crime, disse ele

A arma do crime não deixa margens para dúvidas.
Se fosse um nova-iorquino teria usado um picador de gelo. Como foi um português, usou um saca-rolhas...

quinta-feira, janeiro 06, 2011

125 Azul

Às vezes sinto-me como se tivesse uma arma de fogo apontada à minha cabeça.
Nessas vezes, só consigo pensar numa palavra: DISPARO.
Depois disto, consigo  visualizar os meus miolos  misturados no sangue vivo e espalhados pelas paredes próximas.
Não vislumbro quaisquer lágrimas. Só alívio. A sensação exacta de quando estamos muito aflitinhos e nos sentamos, finalmente, na sanita.

quarta-feira, janeiro 05, 2011

Pontas soltas

Senti muitas vezes o cheiro da tua terra nos meus cabelos, sem ter pisado terra ou cheirado cabelos.
Vi a tua terra inscrita no lado invisível do meu olhar, se ele existisse.
Apaixonei-me incessantemente pela tua terra de tanto ver as figuras ocre que criavas.
Eras moçambique em vida. Serás moçambique em morto.
Dou-me a ti MALANGATANA. Dou-me a ti como outrora me entreguei à terra ocre, roubadora de sossegos e inventora de permanências.
Dou-me a ti MALAGANTANA. MALAGANTANA. MALANGATANA. MALANGATANA.MALANGATANAMALANGATANAMALANGATANAMALANGATANMALANGATAMALANGATMALANGMALANMALAMALMAM...

terça-feira, janeiro 04, 2011

Mário Augusto vs. Papões

Tenho papões a atormentar-me o sono. Com esta idade, os papões não são aquelas figuras disformes e monstruosas. São, isso sim, pensamentos disformes e monstruosos. Para dissipá-los, ligo a TV: pior a emenda do que o soneto.
Às três da madrugada estava a passar, na RTP, o Cinemax: pensei, olha, boa, vamos lá saber mais sobre cinema. O entusiasmo durou pouquíssimo. Porquê? Perguntam e bem!
Assistir ao Cinemax é como assistir a um combate de boxe. O Mário Augusto finge que faz umas perguntas para o crítico responder, mas assim que coloca o ponto de interrogação no final da questão, responde ele mesmo à pergunta. Confuso? Também acho. Ainda por cima soa pessimamente num programa de televisão.
O crítico bem tenta  discursar de forma coerente sobre os filmes, mas o Mário Augusto atropela-o a aplica-lhe K.O. sucessivos.
Será que podem mandar calar o sr. Mário Augusto?
Oh, vá lá! Ou contratem, em alternativa, um crítico vigoroso, musculado, que arremesse o braço direito contra o discurso do Mário e o obrigue a respeitar a vez do outro.
Mário, há mais pessoas a perceber de cinema, está bem? Sei que é difícil aceitá-lo, mas tenta. Boa?
Fogo, venham os papões atormentar-me o sono. Mil papões. Todos os papões.