quinta-feira, outubro 01, 2015

Só Caetano

Doce, como há poucos.
Meigo, como haverá ainda menos.

Nasceste para consolar-nos. 
Ainda me lembro do choque ao saber-me grávida tão pouco tempo depois de estar grávida: "está aqui uma coisinha", disse a Madalena. Uma coisinha.

Estava enganada. Não eras uma coisinha. 
De todos, foste o que nasceste com mais força. Não precisei procurar-te. Ouvia-te. O teu choro era percetível a quilómetros, como se dissesses: estou aqui.
Eu sei, bebé. 
Eu vejo-te. 
Sinto-te. 
Amo-te.

Não me lembro de ensinar-te nada. Quando quero ensinar-te, já tu aprendeste.
Bebes água pelo copo.
Sobes para as cadeiras, mesas, camas.
Desces das cadeiras, mesas, camas.
Cantas as canções sem dizer as palavras.
Danças as canções mesmo que sem palavras.
Escolhes os livros. As histórias que queres que te contem.

A tua língua tem dicionários próprios: Bu - Có - Zó - Pei.
Sabes sempre o que queres, mesmo não querendo. 
Não desistes, insistes.

Abraças como poucos.
Afagas como nenhuns.


És o meu Caetano. Sem Veloso, mas com a mesma capacidade de me enlevar.
Tens um jeito próprio.
Enamorei-me de ti,contigo para sempre.
Mesmo sabendo que, de todos, és o que não me escolhe em primeiro lugar. 
Preferes o Lucas. E eu aceito a tua preferência, resignando-me com amor. 



Afinal, o casamento ainda é deste tempo

Vais casar.
Casar. Casarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasar.

"Ai vida", diz a Branco e eu acompanho-a - ai, vida...

Era ainda ontem e estavas ao meu colo, a sobrar-me dos braços. Deves ter sido o primeiro. Estreaste-o. E eu gostava tanto que me lembro de esconder-me de todos só para pegar-te. Tudo servia como desculpa. 
"Tia, ele estava a chorar."  Mesmo que não estivesses.
Treinavas-me, sei-o agora, para ter estes braços de mãe, capazes de aninhar todas as dores do mundo.

Era ainda ontem quando me emocionava com a tua redação escolar a confessar a vida inteira dedicada ao futebol, a confessar a mágoa de não poder jogar, pois a doença então descoberta roubava-te esse sonho, antes mesmo de saberes sonhar.

Era ainda ontem, foi ontem, sei-o, que abandonaste todos os jogos em que perdias. Vencer era o teu ADN, a derrota era assunto dos fracos e, esses, não te interessavam. 
Eu ria-me. A Tânia ria-se. a Rita ria-se. Tu irritavas-te.

Era ainda ontem que me consolavas pela perda. A perda de um amor já ido. A perda irremediável dos que partem e não voltam. 
"Prima" é assim que começam todas as tuas frases...

"Prima", eu oiço-te. Eu oiço-te. Até no dia em que corri que nem louca a salvar o Rodrigo dos olhares dos vizinhos, do gelado ensanguentado, da moto deitada no chão e do teu olhar perdido que dizia desculpa, mil vezes desculpa.
Não te culpei, um segundo que fosse, logo, não havia lugar para a desculpa.

És íntegro, incorruptível nas tuas decisões e nos teus gostos. 

És deste tempo, sendo de outro. 

És tu, contigo e com o que escolhes ser de ti.

Não tenho dúvida de que sábado será um dia de muitas emoções. 
Não me embaraçará as lágrimas porque marcarão a felicidade de te saber feliz. 
Sê feliz.
Quero muito ver-te feliz.




sexta-feira, maio 08, 2015

2013-2015

Escrevi que nem louca nestes últimos anos.
E não há um único rasto das palavras que juntei em frases e das frases que verti em texto.
Tudo escrito em escrita que não se vê, não se sente, logo, não existe?

Eu existo. Como sei?
Sei-o porque tu me ajudaste a descobrir.
Sim, tu.
TU
Só tu, mesmo tu.

E tudo pode ficar como antes, mas nada ficará como antes.
Depois de ti, o amanhã, com a escrita a tocar-me nos dedos e os
sentimentos virados do avesso.
Sem tempo mas com tempo para descobrir. Descobrir-me. Descobrir-nos.
Há tempo.
Haja tempo.

Zé, o meu

Era uma vez o Zé, senhor de nenhumas fortunas e pouco dinheiro. A compensar-lhe o desgaste da carteira vazia, tinha o génio dos artistas.
Fugiu à mesa pouco farta, ao calor desenfreado e à lonjura de nenhures do alentejo e estabeleceu-se em Lisboa. Com ele vieram os quatro filhos e a mulher. Mas o Zé, de marido pouco soube, de pai pouco fez. 
Os quatro filhos depressa se multiplicaram em netos e em bisnetos. Da mesa pouco farta, Zé passou a uma família farta. E fartava-se dela com frequência, embora nunca ninguém lhe tenha conhecido um esgar de impaciência ou de intolerância.
As mulheres, segundo a Maria, a esposa, também se multiplicavam e nem as primas escapariam a tamanha voracidade sentimental.
O Zé viajou - Espanha, Suíça, Holanda.
O Zé fez amigos até mais não: 1, 2, alguns, vários, muitos, tantos.
O Zé reinventou-se e nunca sucumbiu ao infortúnio, nem mesmo quando se viu obrigado a enterrar a Maria no cemitério de São Domingos de Rana.
Disse aos filhos que haveriam de morrer primeiro do que ele. Assim não foi, mas ao dizer isso ele não queria dizer isso, queria apenas sublinhar que se sentia eterno como se tivesse bebido água da fonte da juventude.
E foi jovem até não ser mais.

(ainda tenho os teus olhos nos meus. ainda guardo o calor das tuas mãos nas minhas. menos um para amar. menos um para amar-me. sentir-te-ei pelos restos dos dias que ainda me sobram. chorar-te-ei como agora, no silêncio de quem não precisa mais nada para lembrar-te. somos iguais. quero honrar essa igualdade. tu avô eu neta. mas sem o meu avô como poderei manter-me neta?)