domingo, julho 05, 2009

Memóires

Lisboa. Chiado. MetroStudio. Três da tarde. Mãe. Irmã. Sobrinho. Eu. Melhor, eu com ar de quem dormitou apenas umas horas e desejava ardentemente voltar a fazê-lo.
O som das lavagens. O som das tesouras nos cabelos. O som dos secadores: melodias suaves aos meus ouvidos a arrastar-me num embalo permanente.
-Tia (a mão dele pegou na minha), quando é que sou eu a cortar o cabelo? Eu não quero os caracóis.
Respondi-lhe que a Vânia estava a acabar de cortar o cabelo de um cliente e logo a seguir seria ele.
Começámos a falar de Power Rangers, de Cars, de Homem-Aranha e em pouco tempo atraímos outra criança como ele para o nosso mundo.
Desliguei o piloto automático que se concentrava em horas não dormidas e em cansaço que daí advinha e entreguei-me à arte mágica de ser novamente criança.
Contei histórias. Eles ouviram. Cantei canções. Eles ouviram. Tivémos conversas sérias e conversas fingidas e os ponteiros do relógio caminhavam em direcção ao tempo futuro, só que nós os três nem dávamos por isso.
O pai do André estava despachado. A mãe do André disse-lhe que estava na hora de ir embora. O André disse-me que não queria ir:
- Posso ficar mais um bocadinho? Eu não quero ir.
Agarrou-me na mão e olhou-me dentro dos olhos:
- Amanhã posso vir outra vez?
- Posso ir à casa dele (apontando para o Santiago)?
- Eu não quero ir (disse outra e outra vez).
Tive vontade de pedir aos pais do André que o deixassem mais um bocadinho. Íamos voltar a viajar pelo mundo dos pequeninos e com isso crescer uns centímetros.
O André abraçou-me para se despedir e aquele abraço foi tão sincero que por segundos quis impedi-lo de ir.
Não impedi. Ele foi. Eu e o Santiago ficámos.
Aquele menino vai crescer e nunca mais se lembrará daquelas horas passadas no cabeleireiro, em Lisboa. Ao contrário, eu quero que o André seja uma das memórias permanentes na minha história pessoal. Por isso escrevo o nome dele nestas páginas - impedindo-o de morrer.
Eu e o Santiago, depois dele cortar o cabelo e manter os caracóis (a mãe teve mais força do que a sua vontade de criança) continuámos a empreeender viajens infinitas:
- Tia, porque é que o Homem-Aranha está ferido?
- Foi o Octupus.
- Porquê?
- Porque o Octupus é mau e queria fazer mal à MJ.
- Porquê?

- Porque o Octupus quer matar as pessoas de quem o Homem-Aranha gosta.
- Porquê?
- Porque as pessoas más fazem maldades.
- Porquê?
- ...

2 comentários:

Coffee Taste disse...

Os teus textos mão nasceram para ser comentados, porque depois de escreveres não há mais nada a dizer. Venho aqui, leio, penso, sorrio... Mas a maior parte das vezes não sei o que dizer. As palavras, já as usaste tu, e melhor.

Um beijo e obrigada pelos momentos mágicos ao ritmo da tua escrita.

FigueiRita disse...

Sim... foi giro! Ele é de facto muito curioso e cabe-nos a nós, adultos, responder-lhe acerca os seus porquês... Claro que ao fim de algumas respostas percebes que não fica saciado... :) Obrigada pelo esforço e pela companhia. Obrigada por desceres à idade dele e inventares universos e realidades. Ele Adora-te. E o André, te garanto, ficou mais pobre por não ter ficado... Teria adorado, também. Beijo