segunda-feira, abril 04, 2011

Direito à vida, mas também ao amor

O amor não é um direito que se adquire à nascença (embora devesse sê-lo).


Aproveito o fim-de-semana para visitar os meus pais e os meus avós com tempo. Tenho a sorte, ainda por cima, de viverem - uns e outros - muito próximos, não na mesma rua, mas no mesmo bairro. Aliás, falar daquele bairro é falar de mim: o meu "eu" fez-se nas suas ruas, nas suas pracetas, no seu ringue.
Velho, muito velho, tem o antigamente inscrito nas paredes caducas. A igreja, que fica no átrio, ao contrário do edificado, é moderna, tem paredes de cimento e não parece sequer uma igreja. Não creio que deus venha comungar com os fiéis naquele lugar. Assim é que, não só serve para o culto das velhinhas que por ali se movimentam com dificuldade, mas também para os toxicodependentes fazerem as coisas que os toxicodependentes fazem: aumentar a sua dependência dos tóxicos.
A sorte é que as horas de culto e as outras não coincidem, pelo que a harmonia dá-se (na maior parte do tempo, pelo menos naquela em que a PSP não é chamada a repor a ordem e o sossego dos habitantes).
Poderia escrever uma história sobre cada um dos prédios que compõem o ramalhete do meu ex-bairro. Eles guardam no silêncio das suas paredes recaiadas relatos de tudo e mais alguma coisa - maridos que se enforcaram, filhos que esfaquearam pais, irmãos que casaram entre si, pais que molestaram filhas deficientes, homens enlouquecidos, mães que perderam filhos, como disse: tudo.  
Também há pessoas que sempre viveram envoltas num mistério indecifrável. Pessoas cujo entendimento escapava à maior parte.
No sábado, cruzei-me com uma dessas pessoas: cabelo comprido, grisalho, roupas circenses, atiradas contra a magreza de um corpo que deixou a agilidade uns anos antes à porta da juventude, brinco nas narinas, o andar ligeiro, arrastado.
O meu avô, que me acompanhava, perguntou à figura que acabei de descrever se estava melhor - ali, no meu ex-bairro, as pessoas ainda se interessam umas pelas outras, há a simpatia da pergunta e o fingimento do interesse:
- Cá ando, Sr. Carlos. Cá ando. Estou muito só.
Não parou, disse aquilo com o mesmo tom, a mesma inevitibilidade com que diria qualquer outra coisa menos chocante ou mais banal.
Não esqueci, até hoje, as palavras ouvidas.
O amor não é um direito que se adquire à nascença (embora devesse sê-lo). Há pessoas que vão morrer sem nunca terem tido a sorte de serem amadas (devidamente) por alguém - o direito à vida deveria implicar o direito ao amor.

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