Acho que era um dia de sol. Não excessivamente quente. Nem frio. Um dia de sol como outros.
Acho que foi numa casa de pessoas extraordinárias. Pessoas que não encontram no mundo exterior um lugar que possam chamar de seu.
Acho que foi num dia de trabalho comum. Umas coisas por arranjar. Umas ferramentas tiradas da caixa, sem pressa.
Até que, no corredor, um tipo de olhar alucinado, com uma faca em riste, desata a correr para ele.
A faca. Só pensava na faca. A faca a rasgar-lhe a pele. A faca a feri-lo de morte.
Deixou as ferramentas para trás. O trabalho para trás. O sol para trás.
Correu sem mais nem comos. Atravessou o corredor em passadas largas e imprecisas.
A faca. A faca a aproximar-se. O corredor a terminar. A parede a transformar-se em obstáculo impossível.
Olhava para trás em golfadas. Sustendo a respiração.
O outro seguia-o. Com a mesma cara de antes: alucinada. E a faca na mão. Em riste.
Acabou o corredor. Acabou a corrida. A parede estava ali: intransponível.
Só a faca poderia atravessar a fronteira do ar e entrar, por fora, dentro. Feri-lo. De morte.
Voltou-se para trás, rendido. Desistente.
O outro, o que o seguia, parou de correr.
O olhar? Alucinado.
Olhou para ele, bem fundo nos olhos, e disse-lhe, estendendo-lhe a faca temida:
- Toma. Corre tu agora atrás de mim.