sexta-feira, maio 29, 2009

uma noite na alfredo

maternidade alfredo da costa. 24.00. um futuro-quase-pai e quatro amigos. não havia esquina, nem solidó, mas havia um carro-vassoura com famous, gelo e copos de plástico. também havia minis. um fim de noite improvável com pessoas improváveis.
anetodas. álcool. risada. boa disposição. alegria porque o nascimento não deve ser celebrado de outra forma.
grávidas. muitas grávidas em fim de gestação. pais, rostos de ansiedade encostados às cadeiras da urgência. cigarros. telefones a tocar a toda a hora.
dor. agonia. contracções que vão e vêm e quando vêm trazem a força de mil trovões.
abraços. outro gole de uísque partilhado pelas bocas. abraços. medo: "e se o bebé nasce com algum problema?" não nasce. frémitos percorrendo o futuro-quase-pai e os amigos, que os disfarçam sob o álcool, os cigarros e os abraços.
afonso. teresa. miguel. família desenhada sob o olhar atento de médicos e enfermeiros. scooter. o médico que fará o parto veio de scooter. deixou o carro em casa e veio de scooter. boa! um médico que viaja de scooter. alívio.
sinos. sinais. cansaço. espera. mais abraços. histórias de angola, de uma angola que foi o passado de uns, é o presente de outros e a terra prometida para os que sobram. que são poucos. quase nenhuns. só um: eu!
brindes. conversas em frente e dentro do carro-vassoura. fotografias para aprisionar a memória e não deixá-la falar por si. tradição. falta dela.
tradicional improvisado. nascimento adiado. já falta pouco, mas o pouco parece tanto. abraços. até amanhã. e amanhã nada disto soará igual.

quinta-feira, maio 28, 2009

Capturar o silêncio

Tenho a janela do gabinete semi-aberta, por causa do calor que se faz sentir. Dessa frecha de janela, vários sons são convidados a entrar, sons que me escapam na maior parte do tempo. Distingo, ainda agora, sons de pássaros e imagino que andem em rodopio, de ramo em ramo, habitanto as árvores que habitam a margem do rio Tejo. Oiço igualmente sons de carros em andamento e um ou outro de aviões, que entram e saiem dos céus de Lisboa. E se estiver muito atenta, consigo ainda ouvir o rio, as ondas subtis do rio existindo para si próprias; ou o som que as tágides fazem em busca de nova inspiração.

Ontem à noite fui visitada pelo silêncio e deixei-o entrar. Por momentos, senti o meu coração acelarar, o peso do silêncio era tanto que tive medo de não conseguir sustentá-lo. Na verdade, não consegui. Fugi para o meu quarto e refugiei-me no Jorge. Abri-o, desfolhei-o e indaguei-o sobre o silêncio. Em troca, só me falava da poesia. Só mais tarde percebi, não há forma mais eficaz de escapar ao peso do silêncio do que ter uma voz em permanência conhecedora da "existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia".

terça-feira, maio 26, 2009

Voar-sonhar-ser

Tinha um vestido azul, comprido, que esvoaçava com a força do vento. Sorria e o sorriso condizia com a cor azul do vestido, ainda que fosse um pouco mais claro, quase azul-céu. Subitamente, o vestido levantou voo e com ele o corpo da jovem, que flutuou pelo ar. Não estava assustada, antes pelo contrário, o sorriso azul-céu rasgou-se e os braços exultavam em voo descoordenado e inesperado.





Há psicanalistas que defendem que há três sonhos que nos acontecem recorrentemente, um deles é sonhar que voamos e para cada um de nós haverá uma razão associada a esse sonho, uma determinada significação subjacente aos contextos que nos determinam: medos, ambições, infância, etc.

Não há sonho que mais prazer me traga. Não tenho forma de saber se as sensações que experimento nos meus sonhos, enquanto sónia-pássaro, serão aquelas que experimentaria na realidade, mas pouco importa. A verdade é que os sonhos mais intensos que tenho relacionam-se ou com voos ou com mortes que estão, afinal, indissociados do prazer e da dor - dois pilares que sustentam o nosso devir.

Ramón Sampedro (Javier Bardem), o tetraplégico de Mar Adentro, recorria frequentemente ao voo para se libertar da prisão em que o seu corpo se transformou.
Alimento a minha imaginação desses planos imensos de voo rasante e libertador. E o que é preciso, afinal, é não deixar morrer a nossa imaginação de fome.

sexta-feira, maio 22, 2009

Narciso(a)

Acordei com uma voz sensualíssima, rouca, arrastada, perfeita. Resultado de uma constipação que não pode ser suína, uma vez que não estive no México ou nos EUA. Mas suína ou não, a verdade é que o muco me escorre pelas narinas e os atchins ecoam pelos corredores por onde me movimento. Já para não falar da vermelhidão dos olhos, que me dificulta o olhar.
Agora... esta voz é A VOZ. Se me fosse permitido, hoje comia-me. Agarrava-me pelas pernas e atirava-me contra uma parede, depois, sussurraria aos meus ouvidos para mais profundamente sentir esta voz sexy, quente que lembra as dançarinas de cabaret, com a boquilha e o cigarro na boca - ou lembrar-me-ia se alguma vez tivesse falado com dançarinas de cabaret:
- Pagas-me uma bebida ou subimos para o meu quarto?
- Com essa voz, esquece lá a bebida e passemos já ao quarto.

terça-feira, maio 19, 2009

Se eu...




Se eu fosse uma das personagens do Muppet Show, seria claramente o GONZO.


Se eu fosse uma das personagens das Desperate Housewives, a SUSAN.


Se fosse uma das personagens do filme de animação Ice Age, seria o esquilo SCRAT.


Como personagem da vida real, sou apenas a sónia.


E o que tenho em comum com todos eles?


As boas intenções aliadas ao fracasso total; ainda que, ingenuamente, insista em continuar sem pensar desistir, ou pelo menos, sem pensar nisso mais do que um par de horas.




No domingo fui ao cinema do El Corte Inglés. Antes da sessão ter início, o gerente entrou para avisar que ela não ia realizar-se porque tinha ocorrido um problema grave com a máquina de projecção.



Ri-me. Saí para fora da sala. E pensei: ainda bem que não comprei pipocas.

quinta-feira, maio 14, 2009

Ele e ela

Ele estava ali, ao lado dela, para lhe pegar na mão, olhá-la nos olhos e dizer-lhe com uma voz profunda:
- Queres namorar comigo?
Ela respondeu-lhe "não" com a doçura e o carinho com que lhe teria respondido "sim".

quarta-feira, maio 13, 2009

A pretidão do céu

(tia) - És mau.
(sobrinho) - Mau és tu.
(tia) - És preto.
(sobrinho) - Preto és tu.
(tia) - És lindo.
(sobrinho) - ...
O céu disse-lhe que o pai era preto. Mas o céu não fala, quanto muito, ouve. Mas ele insiste que o céu lhe disse que o pai era preto. Nós assentimos com os braços e avançamos com a vida. A nós não nos importa a cor da sua pele. Não nos importa mesmo. Só na medida em que sabemos que importa a outros. E que estes outros convivem com ele, não são seres resguardados na distância.
(sobrinho) - Não quero essa música. É feia. Põe Da Weasel.
(extensão de braços maternais) - Não podemos ouvir sempre música de pretos.
A escola, principalmente na primeira infância, tem de funcionar como extensão dos braços maternais e familiares. As mães não têm tempo, trabalham. Os pais não têm tempo, trabalham. E os filhos já não podem ficar entregues aos avós, pois estes também não têm tempo, trabalham. A extensão dos braços maternais e familiares não podem dar respostas como "não podemos ouvir sempre músicas de pretos."
Os pretos e os brancos. Nós e os outros. Os pretos. Os brancos. Nós. Os outros. Pretosbrancos. Nósoutros.
Já não tenho raiva, só pena dos ignorantes que vêem a vida com filtros de cor, raça, religião, etnia, estatuto social. Só pena.
A minha irmã descobriu hoje que o céu, afinal, não só fala como ouve: tem braços, pernas, boca e um cérebro de um tamanho tão mísero que lhe afecta a visão. Trabalha no sítio da extensão dos braços maternais e familiares e chama-se... imagine-se... CÉU!

segunda-feira, maio 11, 2009

Gota D'Água

Fui porque era Chico, antes de ser Paulo ou outra coisa qualquer. Fui porque era Eurípedes e Medeia pela batuta musical e artística de Chico Buarque e por uma gota de água o meu universo foi aquilo e aquilo foi suficiente para eu entender que o sofrimento habita o ser humano por dentro e que a finalidade de todos nós deveria passar pela harmonização da vida com a dor sem procurar ou desejar a fantasia da felicidade em demasia, pois ela é a maior mentira que nos contaram desde a existência de deus.


Gota D'Água é uma história comum, deprimentemente comum, que a torna sempriterna, apesar da sua antiguidade se estender já à época clássica.


A história anda à volta de uma mulher - Joana/Medeia - que é deixada pelo marido - Jasão - uma vez que este se apaixona por uma mulher bem mais jovem - Alma/Creúsa - ou pelo poder que o dinheiro do seu pai - Creonte - propicia.
Joana é deixada para trás num passado que é, afinal, o seu único presente. Enquanto a Jasão o futuro lhe promete um caminho de sucesso e crescimento pessoal, a Joana esfrega-lhe na cara a inutilidade de uma vida que já foi e que não poderá voltar a ser. A única herança que cabe a Joana por ter partilhado com Jasão 10 anos de vida comum são duas crianças menores - dois gatilhos apontados na sua direcção a lembrar-lhe o fracasso de um amor que acreditou duradoiro. Uma gota de água bastou para Joana perceber que a única forma de recuperar o que lhe fora roubado era roubar de Jasão a sua consciência: é por isso que envenena os dois filhos e a si mesma.


A voz de Joana/Izabella Bicalho é iluminada e iluminadora: ela traz-nos a lucidez alucinada de quem perde e a loucura apaziguadora de quem se vinga.


Moralmente, não sei dizer se defendo a atitude de Joana, se a condeno. O que sei é que todos nós já fomos Jasão e Medeia, já fomos abandonadores e abandonados e sabemos que ambas as situações são de morte, cada uma à sua maneira. E que basta uma gota de água para querermos matar ou desejarmos ser mortos.

"Já lhe dei meu corpo
Minha alegria
Já estanquei meu sangue
Quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor...

Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água..."




quarta-feira, maio 06, 2009

Only LOVE

"Only love can leave such a mark (...)
only love can heal such a scar"

o amor é um lugar estranho. uma faca de dois gumes. azul e doce num dos lados. cortante e ácido
no outro. a passagem de uma margem à outra faz-se de formas inesperadas, umas vezes; violentas outras.
um grande amor cura-se com outro grande amor que se cura com outro grande amor que tem de curar-se com outro grande amor que se poderá curar com outro grande amor de outro grande AMOR.
a viver assim, seremos, de facto, todos irmãos. é por isso que a vida é um lugar estranho. ou talvez não. se calhar a vida é um lugar simples que se torna estranho uma vez que somos todos irmãos a tentar escapar à inevitabilidade de sermos tão iguais na nossa ulterior diferença.
dá a outra face. eu DOU. atira a primeira pedra. EU atiro. há que encontrar o próximo grande amor para sermos mais irmãos de alguém pela razão da cura.
a mão que dá é sempre a mão que tira. mas a mão que tira raramente é a mão que dá.

sábado, maio 02, 2009

The strange way of life

E se de repente um estranho, em vez de flores, te oferecesse o perfume que delas emana? Te oferecesse a esperança numa caixinha pequenina ausente de contornos ou tamanho? Te oferecesse, sem saber ou sequer adivinhar, tudo o que sabes e advinhaste um dia sobre o teu passado e o teu futuro?
Aceitarias das mãos de um estranho o que anseias há tanto?