quarta-feira, setembro 29, 2010

Os hospitais são lugares sombrios.
Há decadência a espreitar por todo aquele branco: das paredes, da roupa das camas, das batas dos médicos...
Há incertezas. E há medo.
Não gosto de hospitais.

sexta-feira, setembro 24, 2010

Há coisas que não se explicam...
Por exemplo, fico com pele de galinha ao ouvir pronunciar *CLIRIS (a palavra não é grave) em vez de CLÍTORIS (a palavra é exdrúxula).
Ou fico verde, quando alguém se dirige a mim e me chama: 'MIGA - dá-me sempre a sensação de que a sílaba "a" ficou entalada algures...
E fico danadíssima se no café, na mercearia ou numa loja qualquer um empregado,a fazer-se de engraçado, returca:
- Queria? Então é porque já não quer (com aquele sorriso de estúpido estampado no rosto).
Eu respondo, ainda que só mentalmente:
- Ó boi, não sabes que a expressão "queria" (designada por imperfeito de cortesia) é apenas uma forma de ser cortês e de não exigir-te o serviço sem mais nem quês? Devias era viver em Espanha, cabrón!

Conversas perdidas

Conversa I

Ele - Às vezes fico na dúvida se devo dizer austríaco ou australiano.
Eu - ?!?!?!


Conversa II

Eu (ao telefone) - Acabou de chegar aqui o meu preto.
Ele (abraçado a mim, com um pedaço de pão na mão) - Olha, sabes que quando como pão fico branco?
Eu - ?!?!?!
(Se o Michael Jackson tivesse sabido disto, será que estaria vivo?)

quarta-feira, setembro 22, 2010

Caricatura a carvão

Não é nos sons intermináveis que faz com as mãos, com os pés, com a boca.
Não é no rasto de desarrumação que arrasta atrás de si. À frente de si. Ao lado de si. Por baixo de si.
Não é nas horas que rouba ao espelho em silêncio.
Não é nas roupas que veste e que despe que-despe-e-que-veste-e-que-veste e torna a despir para vestir enfim.
Não é nos braços compridos, fortes que limitam a visão da criança que foi outrora.
Não é na maturidade do discurso: calmo, equilibrado, bem pronunciado.
Não é na insegurança do que o que os outros dizem, do que os outros pensam, os outros, os outros, os outros (e tão pouco ele).
Não é na gargalhada vibrante que acorda os mortos.
Não é no carinho aos molhos com que chama seus aos seus.
Não é na preguiça que lhe molda os gestos, passados e futuros.
Não é na ambição de fazer 59' aos 100m crowl e e não-sei-quantos a bruços e outros tantos a livres.
Não é no sentido de humor refinado, contagiante, genial com que desarma os que o ouvem.
Não é na capacidade infinita de amar dolorosamente, fidelissimamente, fervorosamente, eternamente um ser, uma causa, o nada.
Não é no gosto e no tempo que dedica à música.
Não é nos desenhos que rabisca cujos traços lhe definem a alma.
Nem nos "i-ó-mãe" ditos em tudo.
Nem na facilidade com que diz "obrigada" ou "desculpa".
Não é no sentido de protecção exímio ou expedito com que me defende das agressões externas, internas, reais mas também as imaginadas.
É em mim. E na parte minha que já é dele.
É nele. E na parte sua que já é minha.
14 anos. E o tempo a carregá-lo longe. Para longe. Lá longe. No lugar da independência.

terça-feira, setembro 21, 2010

Lições já mortas

Victoria Holt.
Este é o nome dos livros que li na minha juventude. Não frequentava livrarias. O dinheiro chegava apenas para o básico e indispensável. Não para livros. Que eram luxo.
Uma das tarefas que mais gostava era devorar o catálogo da Círculo de Leitores, à procura do próximo romance a quem dedicar os meus olhos, mãos, consciência e fantasias.
Todos os meses, sem tirar nem pôr, o vendedor da Círculo premia a campainha da porta da minha casa. Eu (expectante), no quarto, ouvia os passos da minha avó - tenho tantas saudades tuas, avó - e aguardava, ansiosa, pelo livro que tinha escolhido dias antes e que ela me oferecia diligentemente - tu, avó, que nem ler podias.
O vendedor da Círculo era pai de uma grande amiga minha. Amiga que engravidou de um vizinho meu. Abortaram. Era demasiado cedo para terem  filhos. O meu vizinho veio a ter filhos de outras. Nem sei se ela os teve. Ou com quem.
 O pai, que era vendedor da Círculo, continuou a trazer os catálogos. Os olhos nunca subiam ao nível dos olhos dos outros. E a curvatura das costas indicava que, além dos catálogos, carregava a vergonha da desonra.
Eu só pensava em livros. Victoria Holt. Catarina de Médecis. Jovens empedradas.
Não li os clássicos aos 5 anos. Como já li acontecer. Só muito mais tarde entraram na soleira da minha porta. Já sem a mão amiga da minha avó - obrigada, avó, pelos livros que me ofereceste; não quis a vida que eu pudesse ter consciência da dádiva de aprendizagem que me concedias a cada novo livro antes de te teres transformado em buraco negro de um céu que é só meu. Tão meu. Muito meu.

segunda-feira, setembro 20, 2010

Raiva

17 milhões. Foi quanto custou a visita do papa e da sua corja ao Reino Unido.
Em Moçambique, com uma quantia de 3,20 dólares, uma criança compra um kit (pasta, caderno, lápis e caneta) que lhe permite frequentar a escola; para a recuperação completa de uma criança HIV positiva malnutrida bastam 54 dólares e com 12.000 dólares poderá construir-se uma sala de aulas, beneficiando 150 crianças.
São ou não são os 17 milhões números sujos, vergonhosos e pouco cristãos?
Sinto raiva, ainda que seja um pecado tão capital.

domingo, setembro 19, 2010

Auto-retrato

O amor não existe.
Esta frase assombra-me o pensamento há dias e não sei o que fazer com ela. O que fazer dela.
Podia, quem sabe, usá-la como recheio da lasanha que pensei fazer hoje para jantar. Descascá-la e deixá-la refogar junto dos alhos e das cebolas. Aloirá-la. Não em excesso. Só até a cebola ficar branquinha.
Também podia pintar com ela as paredes do quarto. Usá-la como recorte, entre a cor branca e a cor verde timor - nos catálogos das tintas descobrem-se cores poéticas: verde paraíso; verde minho, verde roma; rosa doce; amarelo sol, amarelo lar e azul-o-amor-não-existe.
Talvez encher com ela a banheira e mergulhar o meu corpo cansado em cada sílaba pronunciada: o/a/mor/não/e/xis/te - perfumando o ar com o peso das palavras pronunciadas.
Ou podia agarrar nela e esfregá-la contra o rosto das pessoas que vivem convencidas de que o amor é um pressuposto de vida. Gritar-lhes bem alto para que oiçam aquilo que ela diz, mas não aquilo que pensam que ela diz - parece que eu nunca sei o que as palavras querem dizer, por isso, invento.
O amor não existe. O´Neill sabia-o.
O amor não existe "porque não há feito". É preciso saber fazê-lo.
Já me decidi. Vou barrar o raio da frase no pão, a ver se me engasgo nela...

segunda-feira, setembro 13, 2010

Caixinhas

Os dias de Setembro são frescos. Mesmo que o sol intensifique nos céus, já não aquece como antes.
Uma destas manhãs fui acordada por sons antigos. Daqueles sons familiares, próximos, ainda que totalmente adormecidos ou guardados em caixinhas multicolores na minha consciência.
Foi com alguma surpresa que os meus ouvidos se apropriaram da melodia e o meu cerébro a reconheceu: ouvi um amolador, mais a sua gaita, a anunciar presença na proximidade do 302.
Antigamente, os amoladores vinham em bicicletas ferrugentas oferecer os seus préstimos às donas de casa de bairros periféricos. Julguei que a profissão estivesse extinta. Tal como as donas de casa. Pelos vistos, enganei-me.
Este amolador vinha de moto. Ferrugenta. Ao bairro periférico, no 302. Mas não houve dona de casa que se aproximasse. Assim veio. Assim foi. Sem história, a não ser o facto de ter acordado em mim sons da infância, cada vez mais distante, preservada em caixinhas multicolores na minha consciência.
Também as haverá escuras. Pretas. Sombrias. Como a caixinha de Pandora, que guardava todos os males da Humanidade.Que a essas não haja melodia que as desperte. Assim reze a esperança...

segunda-feira, setembro 06, 2010

Espelho meu

Dei-me conta de que a imagem que projectamos nos outros raramente corresponde à verdade. Ou melhor, raramente corresponde à verdade integral.
Tinha terminado o jantar: rolo de atum com legumes, confeccionado a seis mãos. Ao desbarato na cozinha, como na vida.
Na troca de confissões e medos - após o jantar ou após o sexo sabe bem deslindar emoções e desbravar caminhos inóspitos dentro de nós próprios - dizem-me:
- És uma imagem de força, mas, na verdade, és tão insegura como outros.
Concentramos grande parte da nossa energia a disfarçar o nosso "eu". A disfarçá-lo ou a ornamentá-lo, engradecendo-o, individualizando-o. Até porque reconhecemos que muito pouco nos distingue de outros como nós.
Não há ninguém que não goste de ser amado. Desejado. Reconhecido. Enaltecido.
Não há ninguém que não se sinta assustado. Receoso. Melindrado. Inseguro. Fragilizado.
Ainda por cima, não há ninguém que não seja qualquer coisa e o oposto disso mesmo. Somos seres de contradição. De antagonismo. De desequilíbrio.
Sou forte, de tão insegura que tantas vezes me sinto? Ou sou insegura, de tantas vezes que me vejo forte. Fortíssima. Fortalhaça. Fortalhíssima?