"Se eu quisesse enlouquecia" é a primeira frase de um conto de Herberto Helder, do livro "Passos em Volta". Para mim, este "se eu quisesse" abre o mundo a infinitas possibilidades; deixa que a imaginação flua e que a vida se manifeste no entrelinhamento do mero desejo e do realmente acontecido. Entre uma margem e outra, escrevo.
sexta-feira, outubro 22, 2010
isto de ser coisa nenhuma
não é que tenha qualquer coisa inteligente para dizer.
não é que tenha qualquer coisa especial para dizer.
não é que tenha qualquer coisa única para dizer.
nem que tenha uma coisa qualquer para dizer.
mas digo. já disse. foi isto. e isto (dirão/pensarão) alguns, não é NADA.
eu, de mim para mim, replicarei: traduzam-me NADA.
"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo (...)"
«Tabacaria», Álvaro de Campos
domingo, outubro 17, 2010
Milagre da multiplicação dos pães
Os noticiários têm pessoas de voz grave e semblante carregado a falar do Orçamento de Estado 2011.
Dá-me vontade de rir a vê-los esgrimir argumentos para defender a recessão, a situação económica difícil e o esforço que é exigível a TODOS os PORTUGUESES.
Engraçado que, em determinados contextos - como este - somos TODOS PORTUGUESES.
Pena é que os responsáveis políticos se lembrem tão pouco de TODOS os PORTUGUESES quando a finalidade é repartir crescimento, melhoria de condições de vida e futuro.
Ainda não usei a máquina de calcular para quantificar a diminuição da minha riqueza: quando se aprende a viver com pouco, o que resta será sempre suficiente.
Já para aqueles que de pouco só têm nada, terão de aprender o milagre da multiplicação dos pães, da alegria, dos peixes, da resistência, das carnes, da resignação, dos iogurtes, da força, dos legumes e da esperança...
quinta-feira, outubro 14, 2010
Subdimensionamento humano
Há hospitais fresquinhos, acabadinhos de nascer, que não têm lugar para todos os doentes.
A desculpa técnica é a do subdimensionamento - palavra chique - mas que pouco diz aos familiares que se deslocam às instalações e encontram o seu doente numa maca, à porta de um quarto com lotação esgotada.
Eu pago impostos. Os meus pais pagam impostos. Os meus familiares pagam impostos.
Eu pago a Segurança Social. Os meus pais pagam a Segurança Social. Os meus familiares pagam a Segurança Social.
Alguém me explica por que está, então, o meu avô, de 90 anos, num corredor de um hospital fresquinho, acabadinho de estrear?
Alguém me explica por que está o meu avô, com a sua doença, a sua dignidade ferida, a sua fragilidade natural, à mercê do olhar dos que passam?
O meu avô está neste corredor, sem forças, a fazer xixi ensaguentado para um plástico transparente, que qualquer um pode ver.
Eu sei que o meu avô tem 90 anos. E que a sua vida já aconteceu. Mas enquanto os olhos dele não se fecharem de vez, não há quem lhe cale a desconfiança e a incerteza daquele lugar. Nem a ele nem a mim.
terça-feira, outubro 12, 2010
Palavras que ofereceria ao dia de hoje se o dia de hoje recebesse palavras minhas no dia de hoje
prenda
de
abraços
com
sede
de
extâse
e
pele
com
a
saudade
do
amor
se as juntasse, daria qualquer coisa como: prendadeabraçocomsededextâsepelecomasaudadedoamor.
de
abraços
com
sede
de
extâse
e
pele
com
a
saudade
do
amor
se as juntasse, daria qualquer coisa como: prendadeabraçocomsededextâsepelecomasaudadedoamor.
segunda-feira, outubro 11, 2010
Curso III
chegar. devagar. olhares ansiosos. lugares disponíveis.
professora. lugar que ocupa. silêncios cúmplices.
rostos. vidas. desvendados. partilhados.
sonhos. ambições. desejos. revelados.
estonianos. polacos. alemães. espanhóis. italianos. turcos. melting pot.
eu. a língua toda. as línguas todas. o ensino.
aprendizagem. eles. eu. nós. juntos.
universo que basta. sala de aula. tecto e chão do mundo. nosso.
sexta-feira, outubro 08, 2010
Palco da vida
"Para ser performer é preciso odiar o teatro. O teatro é falso. A faca não é real, o sangue não é real, as emoções não são reais. A performance é exactamente o oposto."
Marina Abramovic, performer
A acreditar no que diz a performer, Marina Abramovic, sou daquelas que ama o falso. Mas o falso que sabe a verdadeiro, cheira a verdadeiro e se sente como verdadeiro: de realidade, basta-me a minha...
quarta-feira, outubro 06, 2010
Hamlet na A5
Hoje apeteceu-me rebentar as fuças de alguém. Assim mesmo: rebentar as fuças de alguém.
Saí de casa às 08.10 da manhã. Cheguei ao trabalho às 11.00.
Estive com o rabo enfiado no carro três horinhas seguidas, enquanto carros avariados, carros batidos, carros incendiados entupiam as vias. Tudo por causa de uma chuvinha idiota.
Tanto imposto e não há um que seja pago pelos concessionários das estradas aos utentes que vêem a sua chegada ao local de trabalho impedida por toquezitos da tanga? Sobretudo nas estradas portajadas. É que, afinal, pagam-se essas portagens para quê?
Para se ter direito a estradas seguras?
Para se ter direito a estradas mais rápidas?
Sinto-me roubada. Enganada. Vilipendiada. E não gosto.
Apetece-me rebentar as fuças de alguém.
P.S. Agora percebo melhor as personagens da peça de teatro, Hamlet da Silva.
terça-feira, outubro 05, 2010
República mendiga
Fui passear a Lisboa. Nada melhor do que aproveitar, em dia feriado, a cidade esvaziada do correpio rotineiro, das filas de trânsito, do buliço apressado das pessoas. O feriado que comemora a República, que é qualquer coisa que devemos louvar, embora tenhamos tão pouca noção do seu significado. Principalmente num tempo em que os políticos governamentais fazem lembrar os reis com a sua incontrolável sede de impostos.
Ia a descer a rua do Trindade quando me deparo com alguém a dizer-me quase em surdina, em embaraço comprometedor:
- Dê-me uma moeda, a minha reforma é de € 238 e eles não ma entregaram ainda. Tenho fome, queria comer.
Era uma senhora de idade, mãe de alguém, avó de alguém. Era uma senhora que, em algum momento da sua já longa vida, trabalhou para um Estado que agora lhe dá € 238 mensais para sobreviver.
Chorei por dentro. Odeio a miséria. Dei-lhe € 2, com esperança que esse dinheiro lhe matasse a fome e a vergonha por umas horas.
Viva a República.
segunda-feira, outubro 04, 2010
C@s@
Queria ter uma casa para ser viva nela. Queria um canteiro de flores amarelo-alaranjadas para causar inveja aos vizinhos. Queria uma varanda para o infinito, onde pudesse vir sentar-me, ao cair da noite, a perscrutar o sonho dos outros.
Queria uma casa sem paredes e sem tecto - só com janelas. Uma casa onde o cheiro do teu corpo (não o cheiro do teu perfume, porque o cheiro do teu perfume sem o teu corpo não cheira ao que cheira o cheiro do teu corpo com o teu perfume) me arrebatasse de dia e de noite, sem sobressaltos ou sonhos dos maus.
As paredes das casas - assim como os tectos - impedem-nos de sentir a liberdade e fazem-nos recear os que nelas não vivem. Nós somos seres de medos, foi por isso que inventámos as paredes, os tectos, os portões, as grades.
Eu não tenho medo. Mentira. Tenho um medo, unzinho. Tenho medo de que o cheiro do teu corpo (não o cheiro do teu perfume, porque o cheiro do teu perfume sem o teu corpo não cheira ao que cheira o cheiro do teu corpo com o teu perfume) não me arrebate de dia e de noite e que, por causa disso, os sobressaltos e os sonhos dos maus se venham instalar na casa que eu queria mas que não tenho: a tal do canteiro de flores amarelo-alaranjadas e da varanda para o infinito.
A tal só com janelas, que é a maneira mais simples de abraçar a vida defronte - ou como quem diz: de frente!
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