Mundo. Europa. Portugal. Lisboa. Cascais. Parede. Madorna. Rua 25 de Abril.
Eu. Pai e Mãe. Avós. Bisavós. Trisavós. Família. Humanidade.
Vi-te e o meu mundo ruiu.
Habituada a olhar-te são, libertário, selvático, veio agora a realidade repor uma nova ordem, imposta pela velhice e, sobretudo, pela doença.
Fraco, debilitado, frágil, numa luta desonesta contra o tempo.
Tens uma bomba-relógio dentro do teu corpo, alojada com carácter definitivo e não há nada que se possa fazer contra isso.
Gostava de salvar-te da dor, como outrora me salvaste das agressões de escárnio com que os outros nos saudavam prontamente.
Eu e tu somos iguais - dizias-me. E eu acreditava.
Era à hora de almoço e de jantar que essa cumplicidade se tornava mais óbvia: tu ocupavas o lugar de topo, eu sentava-me imediatamente à tua direita. Eras o capitão e eu o teu co-piloto.
O navio paira agora sobre águas revoltas, turvas. Eu já não me sento à tua direita e tu já não ocupas o lugar de topo à mesa. Aliás, nem mesa existe por estes dias. Nem mesa, nem sala, nem casa. Nada.
Lembras-te de me chamares ao teu quarto para ver as tuas coleções de moedas? As tuas colecções de isqueiros?
Um dia, distribuíste um saquinho de moedas de prata, do BPI, a cada um dos 13 netos: a nossa herança.
Desconfio que aquelas moedas servirão, no futuro, para lembrar-te como me lembro agora. O teu rosto bem definido, sob o calor das minhas mãos: pensei que morria, as dores eram tantas.
Há lágrimas aqui dentro. Lágrimas que não posso, nem quero, silenciar. São tuas. São nossas. Entendo-as como um hino ao nosso amor tão próprio. Ao nosso amor que floresceu numa casa que tinha mesa, um lugar de topo e um à direita. O navio que segurávamos entre os dedos e que foi paisagem da minha adolescência.
Sentirei a tua falta, avô. Capitão de uma família destroçada, vagueando no vazio que a tua partida se limitará a concretizar...