quinta-feira, outubro 01, 2015

Afinal, o casamento ainda é deste tempo

Vais casar.
Casar. Casarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasarcasar.

"Ai vida", diz a Branco e eu acompanho-a - ai, vida...

Era ainda ontem e estavas ao meu colo, a sobrar-me dos braços. Deves ter sido o primeiro. Estreaste-o. E eu gostava tanto que me lembro de esconder-me de todos só para pegar-te. Tudo servia como desculpa. 
"Tia, ele estava a chorar."  Mesmo que não estivesses.
Treinavas-me, sei-o agora, para ter estes braços de mãe, capazes de aninhar todas as dores do mundo.

Era ainda ontem quando me emocionava com a tua redação escolar a confessar a vida inteira dedicada ao futebol, a confessar a mágoa de não poder jogar, pois a doença então descoberta roubava-te esse sonho, antes mesmo de saberes sonhar.

Era ainda ontem, foi ontem, sei-o, que abandonaste todos os jogos em que perdias. Vencer era o teu ADN, a derrota era assunto dos fracos e, esses, não te interessavam. 
Eu ria-me. A Tânia ria-se. a Rita ria-se. Tu irritavas-te.

Era ainda ontem que me consolavas pela perda. A perda de um amor já ido. A perda irremediável dos que partem e não voltam. 
"Prima" é assim que começam todas as tuas frases...

"Prima", eu oiço-te. Eu oiço-te. Até no dia em que corri que nem louca a salvar o Rodrigo dos olhares dos vizinhos, do gelado ensanguentado, da moto deitada no chão e do teu olhar perdido que dizia desculpa, mil vezes desculpa.
Não te culpei, um segundo que fosse, logo, não havia lugar para a desculpa.

És íntegro, incorruptível nas tuas decisões e nos teus gostos. 

És deste tempo, sendo de outro. 

És tu, contigo e com o que escolhes ser de ti.

Não tenho dúvida de que sábado será um dia de muitas emoções. 
Não me embaraçará as lágrimas porque marcarão a felicidade de te saber feliz. 
Sê feliz.
Quero muito ver-te feliz.




sexta-feira, maio 08, 2015

2013-2015

Escrevi que nem louca nestes últimos anos.
E não há um único rasto das palavras que juntei em frases e das frases que verti em texto.
Tudo escrito em escrita que não se vê, não se sente, logo, não existe?

Eu existo. Como sei?
Sei-o porque tu me ajudaste a descobrir.
Sim, tu.
TU
Só tu, mesmo tu.

E tudo pode ficar como antes, mas nada ficará como antes.
Depois de ti, o amanhã, com a escrita a tocar-me nos dedos e os
sentimentos virados do avesso.
Sem tempo mas com tempo para descobrir. Descobrir-me. Descobrir-nos.
Há tempo.
Haja tempo.

Zé, o meu

Era uma vez o Zé, senhor de nenhumas fortunas e pouco dinheiro. A compensar-lhe o desgaste da carteira vazia, tinha o génio dos artistas.
Fugiu à mesa pouco farta, ao calor desenfreado e à lonjura de nenhures do alentejo e estabeleceu-se em Lisboa. Com ele vieram os quatro filhos e a mulher. Mas o Zé, de marido pouco soube, de pai pouco fez. 
Os quatro filhos depressa se multiplicaram em netos e em bisnetos. Da mesa pouco farta, Zé passou a uma família farta. E fartava-se dela com frequência, embora nunca ninguém lhe tenha conhecido um esgar de impaciência ou de intolerância.
As mulheres, segundo a Maria, a esposa, também se multiplicavam e nem as primas escapariam a tamanha voracidade sentimental.
O Zé viajou - Espanha, Suíça, Holanda.
O Zé fez amigos até mais não: 1, 2, alguns, vários, muitos, tantos.
O Zé reinventou-se e nunca sucumbiu ao infortúnio, nem mesmo quando se viu obrigado a enterrar a Maria no cemitério de São Domingos de Rana.
Disse aos filhos que haveriam de morrer primeiro do que ele. Assim não foi, mas ao dizer isso ele não queria dizer isso, queria apenas sublinhar que se sentia eterno como se tivesse bebido água da fonte da juventude.
E foi jovem até não ser mais.

(ainda tenho os teus olhos nos meus. ainda guardo o calor das tuas mãos nas minhas. menos um para amar. menos um para amar-me. sentir-te-ei pelos restos dos dias que ainda me sobram. chorar-te-ei como agora, no silêncio de quem não precisa mais nada para lembrar-te. somos iguais. quero honrar essa igualdade. tu avô eu neta. mas sem o meu avô como poderei manter-me neta?)


quinta-feira, setembro 19, 2013

Porque me fizeste mãe, filho

 - Mãe.
A palavra fica, até hoje, ancorada no meu dentro. A desdobrar-me a vida em plenitude e satisfação.

-Mãe, já viste que este ano eu só quero de presente coisas de que preciso mesmo?

Sim, já vi. Já vi que te estás a tornar homem muito rápido. Pelo menos, para mim, é rápido demais, mesmo que ficasses criança a vida toda nunca seria tempo suficiente.
O amor de mãe é sôfrego, desesperado, ambicioso e egoísta. O amor de mãe é tão egoísta.
Se eu pudesse, porque querer eu queria, serias só de mim.

Dezassete. De-zas-se-te. Dez mais sete. Dez com sete.

E daqui a nada, o voo, por fim. Como fim de uma vida que conhecemos tão bem os dois. Nós os dois, juntos.

- Filho, já viste que não me cabes no colo?
- Filho, já viste que a tua barba me pica quando me beijas?
- Filho, já reparaste que viras a cara para não me ver despida?
- Filho, já reparaste que fechas todas as portas atrás de ti?
- Filho, já reparaste que preferes conversar com os teus amigos do que comigo?
-Filho, já viste que eu estou menos mãe e tu menos filho?

Amo-te de um amor tão profundo que, estupidamente, choro só por escrever que te amo de um amor tão profundo.
Tenho tantas mas tantas saudades de nós. De nós antigamente. E tenho ainda mais saudades de nós no futuro.

És único.
És vivo.
És pleno.
És vida.
És graça.
És eu.
És nós.
És meu, mesmo sendo do mundo.
És meu, mesmo quando não existir eu.








segunda-feira, setembro 16, 2013

P de (P)essoa

música de fundo como que a embalar-me os pensamentos
se eu tivesse pensamentos
a vida impede-os
atrasa-os
adia-os
evita-os

E eu deixo-me ir, como no resto
porque não há nada que sobre depois disto que nos resta
não é dinheiro o que nos resta
não é emprego
não é economia
não é dignidade
nem é nada

mas o nada de nada, o nada vazio que está no lado oposto do nada de Pessoa

Às vezes nem pessoa nos resta
Ser pessoa obrigaria os pensamentos a acontecer
não haveria nada que os pudesse impedir, atrasar, adiar ou evitar

Ser pessoa é não poder ir, como no resto
Ser pessoa é estar com o Pessoa em quase tudo o que escreveu
é ser tudo mesmo sendo nada

É comover-nos
É compadecer-nos
É partilharmos
É descalçar os nossos sapatos e calçar os dos outros

Como descalço os meus sapatos e calço os dos outros?

Não sei, se soubesse os pensamentos sobravam-me e
hoje
neste instante
no momento em que digo "no momento"
tenho fome de silêncio

sexta-feira, maio 10, 2013

Estranha forma de vida

Quando caminho pelo longo corredor que vai do meu gabinete ao do meu director, vou convencida de que os assuntos que levo entre os dedos são importantes, muito importantes, tão importantes.Como consequência, a imagem que tenho de mim, nesses pequenos momentos, é de que sou importante, muito importante, tão importante. Eu e o trabalho que é realizado por mim.
Dou passos e, com eles, sinto-me crescer. Como a Alice, mas sem a bolacha mágica. 
Penso: este assunto é importante, eu sou importante e desenvolvo um trabalho importante.

mentira. 
Uma mentira que conto a mim própria para me sentir grande no trabalho que desenvolvo todos os dias. Não faço nada que verdadeiramente mude o mundo - como sempre pensei que faria - ou sequer o microcosmos.


Ao caminhar pelo longo corredor que vai do meu gabinete ao do meu director, vou convicta de que os assuntos que levo entre os dedos não são importantes, muito importantes, tão importantes. Como consequência, a imagem que tenho de mim, nesses momentos, é de que sou insignificante, muito insignificante, tão insignificante. Eu e o trabalho que é realizado por mim.
Dou passos e, com eles, sinto-me diminuir. Como a Alice, mas sem bolacha e sem mágica.
Penso: nenhum assunto é mais importante do que o mundo, que está em mudança. E eu faço parte do mundo, de um dos seus múltiplos e inacabáveis microcosmos. Eu estou em mudança. O mundo muda comigo.

mentira.
A nossa vida é toda ela uma encenação da qual vamos sendo melhores ou piores actores. E da minha encenação faz parte julgar-me importante pelo que faço, da forma como o faço. 

Portanto...

Quando caminho pelo longo corredor que vai do meu gabinete ao do meu director, vou convencida de que os assuntos que levo entre os dedos são importantes, muito importantes, tão importantes.Como consequência, a imagem que tenho de mim, nesses pequenos momentos, é de que sou importante, muito importante, tão importante. Eu e o trabalho que é realizado por mim.
Dou passos e, com eles, sinto-me crescer. Como a Alice, mas sem a bolacha mágica.
Penso: este assunto é importante, eu sou importante e desenvolvo um trabalho importante.





quinta-feira, abril 04, 2013

Retrato

Não és simpático. Tens um sorriso selectivo. Sais ao teu pai, diz a avó Natália. 
Ainda outro dia, a avó Xana esgotou as brincadeiras e não conseguiu arrancar-te um esgar. Nem uma intenção. Nada.
Há alturas, porém, em que o riso chega espontâneo, honesto, natural. Quando o mano velho chega a casa ou o pai, quando vês o Tomi ou uma qualquer criança.
Delicias-te com água. Com a que bebes e, sobretudo, com a que te envolve na hora do banho. 
Estou morta por te levar à praia, no verão. Já nos estou a ver aos dois embrulhados na areia, com a toalha enrodilhada aos nossos pés, sem qualquer utilidade. Já estou a ouvir o teu pai reclamar com a areia que trazemos nos pés, nas mãos, no corpo. E a tia Rita a exigir que não nos aproximemos dela.
És observador, curioso e desconfiado. Não gostas de sítios novos. Ou de pessoas desconhecidas. 
O teu pior pesadelo são viagens prolongadas de carro. Reclamas. Esperneias. Reivindicas.
Gostas de comer: leite, sopa, papa, fruta: maçã, pêra, banana. Quando te digo ba-na-na, ris-te à gargalhada. Ba-na-na. Só de escrever dá-me vontade de rir: ba-na-na (rio-me).
Gostas de música. Antes, adoravas estar ao meu colo a dançar. Agora, queres estar no chão para encontrares o teu próprio ritmo. Abanas as pernas e simulas passos, os teus primeiros passos. Desajeitados, envergonhados, mas passos. Os teus.
A tua história favorita é a do Dentes, o tubarão que, pela primeira vez, vai à escola com a sua sacola. O Dentes morde tudo por onde passa. Curioso, tu também mordes tudo por onde passes - é da idade. Atacas-me e eu, retaliando, ataco-te. Passamos horas nisto: tu mordes-me e eu, fingindo-me aborrecida, mordo-te também. Tu ris-te e eu, só de te ver rir, rio-me para ti.
Não te pareces comigo. És igual ao teu pai. Gostava de ver qualquer coisa meu em ti, mas sabe bem ver em ti o teu pai que não conheci.
Sou doente de amor. Uma doença que não terá cura. Nem eu quereria essa cura. Negar-me-ia a aceitá-la.
Quero ver-te crescer. 
Fico aqui à espera de te ver crescer.
Não te esqueças que estou aqui, à espera, de te ver crescer.
Lucas do Mar  - porque foi de lá que vieste