quinta-feira, novembro 20, 2008

Depois de mim

Morrer é preciso. Morrer não faz parte do leque infindável de escolhas que temos de fazer ininterruptamente. Acontece. Dá-se. A morte não se escolhe, insisto. Nem sequer o momento em que ela se impõe. Já me imaginei morrer, melhor, já me vi morrer de mil e uma maneiras. Há umas que me agradam mais do que outras: afogada, não obrigada. Queimada muito menos. Por acidente jamais. Talvez doente, no recobro de um olhar que me abrace, sem sequer os braços se imporem.
A verdade é que sei que a vida continuará depois de mim. Não igual, necessariamente diferente, não porque eu tenha deixado de existir, mas porque nada permanece igual, nem aquilo que julgamos permanecer. As flores de todos os jardins continuarão a crescer. As crianças sorrirão uma e outra vez. O sol nascerá para os outros, os que ficam. A minha casa continuará no mesmo local, ainda que não seja mais minha. As roupas terão o meu tamanho e o meu cheiro, só lhes faltará o meu corpo a sustentá-las. A música que hoje oiço continuará a ser ouvida. Os filmes que vi e dos quais me tornei parte serão continuamente vistos e farão parte de outros que não eu. A minha família sentirá a minha falta e dirá coisas como vou ter saudades dela. era tão boazinha, todavia, eles continuarão a sentir-se parte de uma família que em tempos também me pertenceu. As solas dos meus sapatos tornar-se-ão inúteis, assim como tudo o que me pertencia: a escova de dentes, os anéis usados no dedo anelar da mão direita, jamais em outros, os brincos. Os livros, os meus livros que são meus porque têm as marcas que lhes pus, como uma mancha de chocolate numa das páginas ou a areia da praia perdida entre palavras impressas. Só que morrer é preciso. E eu sei que morrerei também no rosto de todos os que amei. Embora a minha vida seja somente o amor que sinto; espero que esse amor não morra comigo, mesmo que morrer seja preciso.
Fim

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir

Mário de Sá-Carneiro(1890-1916)
P.S. A ironia da vida é imensa. Enquanto escrevia este texto, a minha mãe ligou-me a dizer que o pai da minha prima Sara faleceu. A Sara já não tem mãe. Agora também já não tem pai.

5 comentários:

Robson Ribeiro disse...

Olá!

Estou de volta por aqui...

Enquanto lia seu texto fiquei pensando em um monte de coisas sobre a morte e não cheguei a conclusão alguma... Bem, eu acredito em vida após a morte, acredito que não somos só corpo (isso não faria sentido algum, mas quando penso na morte desse corpo, chego a conclusão que isso está tão impregnado em minha vida que não há como temer ou negar...
Talvez não seja fácil entender minha forma de pensar, mas quero dizer que morrer é algo muito vivo em nós.

Beijos! Belo texto! Parabéns!

Sónia disse...

Robson, é bom saber-te de volta. Um beijo bem vivo daqueles que não morrem nunca.

;)

Fi disse...

Poderia dizer-te muitas coisas acerca da morte e da vida que nasce com ela...todas elas certas, todas elas erradas...
Perdi os meus pais este ano, os dois.
Está lá a casa, as roupas, os aneis, os filmes, os livros...e está tudo tão cheio deles.
A vida continua, alheia ao meu destino, soma tempo, evolui, acontece.
É essencial a morte, claro que sim, mas posso dizer-te que o coração dos que ficam, não aceita isso tão bem assim...

De qualquer maneira, adorei este post. Sempre pensei na morte do lado de cá...pela primeira vez senti-me, do lado de lá :)

Bjs

Sónia disse...

Sabes uma coisa Fi? Já te tinha visitado há muito tempo, conheço-te a ti, e à tua dor, mais do que imaginas. Já chorei contigo, lendo-te. A verdade é que entrei e saí de mansinho, com medo que pudesses dar por mim. Se ficasse órfã, a solidão que hoje sinto, teria com certeza outra natureza, peso e dimensão. És uma sobrevivente. Admiro-te por isso.

Um beijo.

Robson, adorei a tua última frase, por ser tão certa. Morrer talvez seja mesmo o que há de mais vivo em nós!

Fi disse...

Da tua visita guardo as tuas palavras e as de outro, na leitura que me sugeriste.
Já perdi a conta das vezes que naveguei nas palavras de Miguel Esteves Cardoso. Digo navegar porque cada leitura é uma viagem diferente, cosoante a maré.
Dei por ti, ainda que tenhas vindo de mansinho...e aproveitei a porta que deixaste aberta para entrar nas tuas palavras...de mansinho :)
`
Sou leitura assídua do teu EU, ainda que nem sempre escreva, porque ás vezes ainda ando à procura do meu...

Bjs