Não me venham falar em felicidade, em árvores plantadas no oceano; não me venham falar em amor, em sorrisos de ternura quando se pensa em alguém; não me venham falar de cumplicidade, de sexo, de plenitude.
Falem-me antes do caos que é a vida; do desmantelamento que o nosso coração sofre de cada vez que julga amar e ser amado; da desagregação e segregação de detalhes e de memórias que nos roubam a vontade e nos impossibilitam sermos mais com menos.
Falem-me do acordar doloroso de cada dia, dos detalhes espalhados pela casa: dos iogurtes com pedaços no frigorífico, dos calções e da t-shirt guardados na gaveta.
Falem-me da espera que se faz, mesmo que não se deseje, pela voz, por aquela voz em voraz ansiedade; falem-me das gargalhadas adiadas um dia, outro dia.
Não me venham falar que tudo passa. Porque tudo é demasiado para limitar-se a passar. Passará como passam os carros nas estradas, como passam as pessoas nas estações de comboio ou de metro?
De que marcas eram os carros? De que cores se vestiam as pessoas?
É que eu sei de cor a cor dos calções e da t-shirt guardados na minha gaveta. E sei a marca dos iogurtes com pedaços que apodrecem no meu frigorífico.
Ninguém me venha dar vida,
que estou morrendo de amor,
que estou feliz de morrer,
que não tenho mal nem dor,
que estou de sonho ferida,
que não me quero curar,
que estou deixando de ser
e não me quero encontrar,
que estou dentro de um navio
que sei que vai naufragar,
já não falo e ainda sorrio,
porque está perto de mim
o dono verde do mar
que busquei desde o começo,
e estava apenas no fim.
Corações, por que chorais?
Preparai meu arremesso
para as algas e os corais.
Fim ditoso, hora feliz:
guardai meu amor sem preço,
que só quis a quem não quis.
Cecília Meireles, in 'Poemas (1947)'