Eterna Saudade. Amor de mãe, irmão e sobrinhos. Foste o nosso anjo na terra, agora és um anjo no céu, nunca te esqueceremos. Com amor, para sempre.
Os cemitérios são o consolo dos vivos. E são os velhos que mais facilmente vagueiam por lá, talvez porque a morte, para eles, não seja qualquer coisa de que se oiça falar, mas a matéria dos dias que se aproximam depressa demais. Aos magotes, apropriam-se do espaço e transformam aquela ida em visita familiar e amiga à casa dos que são agora meras fotos e mensagens alinhadas em campas sobre a terra.
- Já foste ao Eduardinho? O filho mais novo da Emília que morreu, o ano passado, num acidente de moto. Coitadinho!
"Coitadinho" é o ponto final para todas as frases ditas no cemitério.
- Se eu soubesse onde era ia lá, coitadinho. Aquela mãe, meu deus, o que sofreu aquela mãe. Coitadinha.
Acompahei a minha avó e a minha mãe pelas ruelas do cemitério, dei o braço à minha avó e deixei que ambas me conduzissem por aquele lugar que conhecem melhor do que eu. A visita começou pelo meu padrinho, falecido em Agosto do ano passado. Vi a campa dele pela primeira vez, tinha uma foto de quando ele era verdadeiramente o meu padrinho e não aquele monte de ossos, dos últimos dias, que rangiam a cada passo e que se cobriam com um blusão de ganga sujo e gasto. Ver a foto dele ali, naquele lugar, fitando-me com olhos robustos e vivaços deu-me vontade de abraçá-lo, tê-lo comigo e ouvi-lo dizer aos meus ouvidos "a minha menina". Ridiculamente, baixei-me sobre a campa, mais precisamente sobre a foto, e imaginei que me abraçava. A minha mãe deixou-lhe uma rosa vermelha gorda, embrulhada em papel de crepe verde, com o autocolante da florista, e pô-la ao lado da foto e das mensagens de pesar da família.
Continuámos a peregrinação e fomos à campa do meu primo Tó. A minha mãe e a minha avó também deixaram lá as flores que traziam para ele. Eu entretive-me a ler as mensagens que as minhas primas encomendaram na altura. Chorei. Não como quando estou triste e zangada com o mundo; chorei devagar, serenamente, lembrando o amor e como esse amor nos rasga por dentro ao sermos obrigados a dizer-lhe adeus para sempre. Entretanto, com as lágrimas ocultadas pelos óculos escuros, ouvi a minha avó dizer:
- Adeus, meu amor, até para a semana. Ela despedia-se do Tó como nos dias em que ia visitá-lo a casa. Ouvi aquela mesma despedida vezes sem conta e ela repetia-o exactamente com a mesma ternura como no tempo em que dele obtinha respostas.
O cemitério é mesmo o consolo dos vivos. Percebi isso quando, ao caminhar em direcção à visita que nos faltava, o tio Isaque, os meus olhos teimavam em fixar-se no lugar onde, em tempos, esteve enterrada a minha avó Maria. Mas ela já não está ali, levaram-na, atiraram os seus ossos para o meio de outros tantos. A família do meu pai não é crente, por isso, optaram pela vala comum. Porém, hoje quis que aquele fosse ainda o seu lugar; egoisticamente, os meus olhos procuraram por ela, embora conhecessem a sua ausência. 12 anos após a sua morte, hoje foi talvez o dia em que mais senti a sua falta.
Estas idas ao cemitério mexem mais comigo do que eu gostaria. Não sou religiosa, aliás, nada. Não sei rezar, não acredito em deus e não frequento lugares de culto. Todavia, não posso deixar de admitir que aquele ambiente me perturba. Vi um rapaz, de joelhos no chão, de livro aberto entre as pernas, a ler para uma campa vazia. A verdade é que só para mim é que ela está vazia; para ele, está ali sob a terra um riso, um cheiro, uma voz que ele conheceu e amou.
O cemitério é o consolo dos vivos. É por isso que eu não me senti consolada. A minha morta, a que eu desejava visitar, aquela a quem eu conhecia o riso, o cheiro e a voz não habita mais aquelas terras. Eu entrei e saí de mãos vazias.