sexta-feira, abril 24, 2009

O maior cego é aquele que não quer ver...

Ontem, enquanto estava a assistir à reunião de atribuição de notas do segundo período do meu filho, li uma entrevista fantástica, saída na revista "Actual", suplemento do Expresso, sobre um professor cego do ISPA - vamos tentar ignorar o facto de eu estar numa reunião, em princípio importante, a ler o que não devia e a não prestar atenção ao que me era devido. Todavia, sem me querer defender, aviso que uma reunião daquele tipo é deprimente. Os pais são todos invariavelmente mais velhos do que eu e estão mortinhos para ouvir, ao contrário de mim, o que a senhora professora tem para dizer do seu digníssimo educando. Ora, eu sei de cor e salteado o que me vão dizer, além de que não preciso que uma professora que está com o meu filho 180 minutos por semana me diga como ele se comporta ou quem ele é.
A entrevista surpreendeu-me não pelo tipo de perguntas feitas - aliás, o aviso de que estas seriam mais ou menos esteriotipadas foi feito pelo próprio jornalista - e sim pelas respostas dadas pelo cego. Descomplexado, este sr. falou da sua actividade docente e laboral, é professor e também biólogo.
Aqui a reunião devia ter entrado naquela parte em que a professora avisa os pais de que os seus filhos são uns lorpas que não perdem tempo a contemplar paisagens estáticas e que só se interessam por paisagens dinâmicas - isto faz prova da sua incapacidade para a concentração.
Ouvi esta parte, enquanto tentava disfarçar o meu desinteresse, e ainda fiz mais, procurei encaixar o Rodrigo na definição de lorpa - quando me veio à cabeça esta cena:
- Mãeeeeeeeeeeee, onde está o meu caderno de Português que EU tirei da mochila, arrumei em algum sítio mas não me lembro onde e TU, porque és mãe, tens a infinita capacidade para encontrar o que eu perco, basta, tantas vezes, mudares os papéis da minha secretária de um lado para o outro ou rodares a cabeça 180 graus.
Tenho de reconhecer, o puto é um lorpa. Continue, senhora professora, enquanto eu avanço umas linhas na entrevista.
Não é que eu tinha a ideia romântica, muito à custa de uma das cenas mais emblemáticas do filme Mask, com o Eric Stolz e com a Cher, de que os cegos podem apreender a noção cromática se, por exemplo, como é demonstrado no filme, associarem às cores diferentes sensações? O sr. cego diz que isso são meras fantasias, uma vez que esse tipo de noção adquire-se apenas conceptualmente.
A professora dirigia-se a mim - bolas, chegou a parte em que o discurso vai ser centralizado em Rodrigo, falta de atenção e irrequietude:
- Mãe, o Rodrigo devia figurar no quadro de excelência da escola, ele tem excelentes capacidades intelectuais (vem aí o mas, é agora), mas é demasiado desatento para isso.
Outra vez a constatação de que eu não queria, o meu filho é um lorpa: tem os instrumentos necessários para ser um geak e não o é.
Voltei à entrevista, estava a começar a ficar ansiosa com tantas constatações. Não é que o professor cego dá aulas, desloca-se às praias e identifica onde estão os peixes, é casado, tem três filhos e não consegue dividir o mundo em cegos e não cegos? Senti-me bem depois de ler a entrevista. Senti-me bem por concluir que o discurso de um cego não tem necessariamente de ser o do coitadinho que não faz mais porque a sociedade não deixa ou porque as condições lho não permitem.
Por esta altura, a professora já tinha repetido pela enésima vez - como se os pais para além de cegos fossem surdos - a necessidade de falarem com os filhos para que prestassem mais atenção às aulas - como se os miúdos, além de lorpas e cegos, devessem ser mudos. Decidi, muito à custa da entrevista, que ia sair dali e não ia cobrar ao Rodrigo o facto de não constar do quadro de excelência da escola - tenho a certeza de que isso seria mais importante para o meu ego de mãe do que para o seu percurso de vida. Ele é um lorpa, mas é de uma estirpe que salva velhinhas em aflição, caídas e sós na casa de banho, porque se recusa a calar perante seja quem for quando tem a certeza de que a sua voz marcará a diferença.
Não estará a escola, e como consequência os professores, cega da matéria humana que tem à sua frente?

3 comentários:

Robson Ribeiro disse...

Fiquei aqui imaginando como deve ser interessante a aula dessa professora... Aliás, pra que tantas aulas, não é?
Com relação ao seu filhote, acredito que ele está no caminho certo.

Conheço tantas, mas tantas pessoas cegas. Você nem imagina. E não há nenhum problema com seus olhos, mas sim com as mentes.

Beijos!

Suka disse...

Curioso...

Foi meu professor. Genial! E não é que o tipo era simplesmente fantástico e descrevia células e microorganismos como se os tivesse sempre visto???

Era fantástico! Toda a gente queria estar com ele. Genial mesmo!

Coffee Taste disse...

Estão tão cegos os professores que querem que os pais treienem os miúdos para serem académicos de referência, como os pais que delegam na escola a função de mostrar o mundo aos filhos... Irritam-me os pais e os professores que não sabem o que nadam cá afazer, porque os putos sabem. Sabem o que querem e sabem que os "grandes" andam cegos, ou distraídos.