Ontem, enquanto estava a assistir à reunião de atribuição de notas do segundo período do meu filho, li uma entrevista fantástica, saída na revista "Actual", suplemento do Expresso, sobre um professor cego do ISPA - vamos tentar ignorar o facto de eu estar numa reunião, em princípio importante, a ler o que não devia e a não prestar atenção ao que me era devido. Todavia, sem me querer defender, aviso que uma reunião daquele tipo é deprimente. Os pais são todos invariavelmente mais velhos do que eu e estão mortinhos para ouvir, ao contrário de mim, o que a senhora professora tem para dizer do seu digníssimo educando. Ora, eu sei de cor e salteado o que me vão dizer, além de que não preciso que uma professora que está com o meu filho 180 minutos por semana me diga como ele se comporta ou quem ele é.
A entrevista surpreendeu-me não pelo tipo de perguntas feitas - aliás, o aviso de que estas seriam mais ou menos esteriotipadas foi feito pelo próprio jornalista - e sim pelas respostas dadas pelo cego. Descomplexado, este sr. falou da sua actividade docente e laboral, é professor e também biólogo.
Aqui a reunião devia ter entrado naquela parte em que a professora avisa os pais de que os seus filhos são uns lorpas que não perdem tempo a contemplar paisagens estáticas e que só se interessam por paisagens dinâmicas - isto faz prova da sua incapacidade para a concentração.
Ouvi esta parte, enquanto tentava disfarçar o meu desinteresse, e ainda fiz mais, procurei encaixar o Rodrigo na definição de lorpa - quando me veio à cabeça esta cena:
- Mãeeeeeeeeeeee, onde está o meu caderno de Português que EU tirei da mochila, arrumei em algum sítio mas não me lembro onde e TU, porque és mãe, tens a infinita capacidade para encontrar o que eu perco, basta, tantas vezes, mudares os papéis da minha secretária de um lado para o outro ou rodares a cabeça 180 graus.
Tenho de reconhecer, o puto é um lorpa. Continue, senhora professora, enquanto eu avanço umas linhas na entrevista.
Não é que eu tinha a ideia romântica, muito à custa de uma das cenas mais emblemáticas do filme Mask, com o Eric Stolz e com a Cher, de que os cegos podem apreender a noção cromática se, por exemplo, como é demonstrado no filme, associarem às cores diferentes sensações? O sr. cego diz que isso são meras fantasias, uma vez que esse tipo de noção adquire-se apenas conceptualmente.
A professora dirigia-se a mim - bolas, chegou a parte em que o discurso vai ser centralizado em Rodrigo, falta de atenção e irrequietude:
- Mãe, o Rodrigo devia figurar no quadro de excelência da escola, ele tem excelentes capacidades intelectuais (vem aí o mas, é agora), mas é demasiado desatento para isso.
Outra vez a constatação de que eu não queria, o meu filho é um lorpa: tem os instrumentos necessários para ser um geak e não o é.
Voltei à entrevista, estava a começar a ficar ansiosa com tantas constatações. Não é que o professor cego dá aulas, desloca-se às praias e identifica onde estão os peixes, é casado, tem três filhos e não consegue dividir o mundo em cegos e não cegos? Senti-me bem depois de ler a entrevista. Senti-me bem por concluir que o discurso de um cego não tem necessariamente de ser o do coitadinho que não faz mais porque a sociedade não deixa ou porque as condições lho não permitem.
Por esta altura, a professora já tinha repetido pela enésima vez - como se os pais para além de cegos fossem surdos - a necessidade de falarem com os filhos para que prestassem mais atenção às aulas - como se os miúdos, além de lorpas e cegos, devessem ser mudos. Decidi, muito à custa da entrevista, que ia sair dali e não ia cobrar ao Rodrigo o facto de não constar do quadro de excelência da escola - tenho a certeza de que isso seria mais importante para o meu ego de mãe do que para o seu percurso de vida. Ele é um lorpa, mas é de uma estirpe que salva velhinhas em aflição, caídas e sós na casa de banho, porque se recusa a calar perante seja quem for quando tem a certeza de que a sua voz marcará a diferença.
Não estará a escola, e como consequência os professores, cega da matéria humana que tem à sua frente?