Minutos depois - a fila estava extensa nesta manhã de Agosto - a conversa estendeu-se a um outro tema que me interessa igualmente: Saramago. Aproveito desde já para esclarecer que não sou leitora assídua, nem apaixonada, de Saramago. De tudo o que li (poesia incluída), gostei do Ensaio Sobre a Cegueira - que ainda não terminei; o livro está lá, à espera que eu tenha coragem de passar a fase das violações em massa - e mais ainda de O Conto da Ilha Desconhecida. Contudo, há comentários sobre a sua obra que me deixam indignada. Assim que as duas senhoras começaram a discursar sobre a falta de pontuação nos textos de Saramago, apeteceu-me dizer-lhes (mas não disse) que antes de expressarem uma opinião sobre um autor ou livro é obrigatório que cumpram a regra básica: lê-lo. Quem lê Saramago sabe perfeitamente ao que me refiro. Dizer que o autor não usa pontuação - segundo as ditas senhoras porque "tem medo de que ela lhe atrapalhe o pensamento" - é, basicamente, sucumbir ao cliché que adoptaram os seus não-leitores. Só um não-leitor dirá que o autor não usa pontuação. Não vou entrar em pormenores técnicos para não aborrecer-vos, mas quero apenas que atentem num excerto do conto que mencionei em cima:
Contudo, no caso do homem que queria um barco, as coisas não se passaram bem assim. Quando a mulher da limpeza lhe perguntou pela nesga da porta, Que é que tu queres, o homem, em lugar de pedir, como era o costume de todos, um título, uma condecoração, ou simplesmente dinheiro, respondeu, Quero falar ao rei, Já sabes que o rei não pode vir, está na porta dos obséquios, respondeu a mulher, Pois então vai lá dizer-lhe que não saio daqui até que ele venha, pessoalmente, saber o que quero, rematou o homem, e deitou-se ao comprido no limiar, tapando-se com a manta por causa do frio.
José Saramago, O Conto da Ilha Desconhecida
Este excerto exemplifica na perfeição as considerações que farei a seguir. É importante perceber que os autores necessitam, na sua jornada, de encontrar uma voz própria para contar as suas histórias. A literatura de hoje obriga à sustentanção da originalidade. Saramago, depois de dominar as regras dos sinais de pontuação, transmuda-as e adapta-as ao seu estilo pessoal: subvertendo a norma. À semelhança do que faz Mia Couto com as palavras que recria; ou José Luís Peixoto na forma como suspende e retoma as narrativas.
No excerto que escolhi, percebe-se como Saramago potencia o uso da vírgula, ela chega a substituir os dois pontos e o travessão - usados normalmente para introduzir o discurso directo - e até o ponto final. É certo que isto, ao início, pode fazer-nos alguma confusão, pois a leitura não flui como poderia. Todavia, é errado insistir no pressuposto de que o autor não pontua os seus textos; ele fá-lo, isso sim, de forma não convencionada, como se a sua intenção fosse a de aproximar o discurso escrito ao oral.
Eu queria ter dito exactamente isto que agora escrevo às duas senhoras (mas não disse).
2 comentários:
Realmente depois de te ler... percebi... afinal ele até usa pontuação... passou-me foi completamente ao lado quando o li... Terei certamente mais atenção, Sra. Profª. Drª., a partir de agora.
Seria tão bom que não fosse possível existir comentários "anônimos". É desconfortável desconhecer quem se encontra por detrás daquilo que se escreve.
Posso dar uma sugestão? Que tal assinar o texto, no final de cada comentário? Isto para quem não faz parte da comunidade "blogosférica".
De qualquer forma, não há por que agradecer; eu limito-me a escrever sobre o que penso ou sinto e eu penso e sinto tantas coisas erradas... :/
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