Era hora de almoço e eu não tinha almoçado. Era hora de almoço e já eu estava enfiada num consultório médico, numa clínica de cardiologia. Era hora de almoço e havia pessoas sentadas nas poltronas verdes da clínica de cardiologia, em Lisboa, onde eu me encontrava à hora de almoço, sem almoço.
A minha avó sentou-se numa cadeira, não quis sentar-se na poltrona porque esta afundava o que a obrigaria a um esforço suplementar para levantar-se dela, quando a chamassem ao gabinete do consultório de cardiologia. Eu sentei-me na poltrona, ansiando por esse esforço suplementar que me arrastaria daquela clínica para fora, para a luz.
Depois de tratar dos detalhes elementares para que a a minha avó fosse atendida, puxei do livro para, pensei eu, viajar com ele para longe daquela poltrona verde e da clínica de cardiologia, em Lisboa.
Foi quando se sentou à minha frente uma jovem de proporções desmedidas. Mas não foi esse o pormenor que me levou a retirar os olhos do meu livro para me focar nela. O telefone que exibia entre a orelha e o ombro direito, enqunto folheava credenciais de cor amarelada, é que me levou a suspender a viagem que o livro me proporcionava.
"Eu nem quis acreditar. Tive de me chatear. O que é isso de me servirem café numa chávena cheia de batom? Nem sequer era meu, porque ainda não tinha levado a chávena à boca (naqueles lábios de carne, nenhum batom sobreviveria). Obriguei-os a servirem-me outro café." Pausa.
Pensei, boa, agora posso voltar ao meu livro.
Errado.
Não pude, como não voltei.
Errado.
Não pude, como não voltei.
O telefone mudou apenas de posição. Agora estava entre os dedos papudos da mão e a orelha: "Não quis acreditar. Um convite de casamento via e-mail?! Onde já se viu. Deve querer é a prenda. Mas comigo não conte, porque não vou dar-lhe prenda nenhuma. Não sei onde vai isto parar. Só porque deixou o marido e agora arranjou aquele deixou de ligar aos amigos. Eu nunca faria isso, aliás, como tu bem sabes, falamos todos os dias ou, pelo menos, dia sim dia não. Não é por eu agora ter alguém (quem diria?!), de quem gosto muito, que não falo aos meus amigos (se fosses minha amiga, até agradecia que não falasses)."
A verborreia continuou (raio da gorda que não se cala). E eu fui incapaz de manter-me desligada daquele universo pobre que me chegava na sala de espera de um consultório de cardiologia, à hora de almoço, sobretudo porque estava sem almoço...
Um comentário:
Também não consigo alhear-me quando tenho alguem a falar mal de outros ao meu ouvido! Que nervos!
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