Acho que foi assim que entrei dentro da sala de aulas, talvez tenha sido assim que olhei para eles sentados à minha frente, ou minutos depois, quando já tinha as mãos completamente sujas do pó do giz, senti nesses momentos aquilo que procuro ignorar a maior parte do tempo: que a minha vida só ganha uma dimensão verdadeira ao vestir a pele de professora de português. Não é que me sinta um peixe fora de água na vivência do meu quotidiano, nem pensar nisso; é apenas ter a noção de que a minha vocação cumpre-se ali, a ensinar.
Ando extraordinariamente cansada e o extraordinário tem aqui o sentido literal de "mais do que o normal", a verdade é que não podia deixar escapar esta oportunidade, mesmo que me obrigue a uma dedicação personalizada. Os materiais são todos pensados e criados por mim, do zero, uma vez que a bibliografia existente é insuficiente e, não raras vezes, pouco profícua. No sentido oposto, diria que as conquistas que vou fazendo; melhor, que eles vão fazendo, possibilitam-me uma sensação de vitória mais ardente e apaixonada.
Um barco acaba de deixar na água a marca da sua passagem, um risco indelével, pouco perceptível na distância. Se eu tivesse de descrever o teu efeito em mim (que não tenho, mas quero) diria que tu és o barco e eu sou a água. Tu deixas-me, ó asa-de-corvo, a herança indelével e eu, como resposta, permito que a espuma das minhas águas enfeitem o teu percurso, tornando-o mais belo.
É engraçado, com uma preponderância trágica, que eu não possa desenvolver a minha acção profissional no sentido da minha formação universitária; é curioso, também com uma preponderância trágica, que os professores sejam os indigentes das profissões liberais e é sobretudo admirável, com um sentido trágico total, que eu mantenha a convicção de outrora - e alguma esperança também - de que o meu lugar é dentro de uma sala, a ensinar e a aprender, a ser cada dia mais velha junto daqueles que serão, em mim, cada dia mais novos.