quarta-feira, dezembro 31, 2008

Ele há Diaz assim...

A ler o Diaz apercebo-me: porra, levo-me tão a sério. E pelo que leio nele, isto não é uma doença geracional. É mesmo uma patologia própria, que não dá para atribuir a qualquer causa exterior. Ajudar-me-ia, se desse.

terça-feira, dezembro 30, 2008

People

As relações humanas são do mais estranho e encantador que há. Julgará alguém que é o que é se no seu caminho não se tivesse cruzado com as pessoas com que se cruzou e, acrescento, com aquelas que deixou de se cruzar? Eu sou tanta gente e tanta gente é o que eu sou.


Já sei qual será a minha próxima leitura: A Última Aula, de Randy Pausch. A edição? Editorial Presença.

P.S. Acabei de fazer a minha pré-inscrição num curso de escrita criativa. Desta vez, com o Possidónio Cachapa. Talvez me aceitem.

segunda-feira, dezembro 29, 2008

E o prémio vai para?

Acabei de saber, por estes dias, que um dos meus escritores de eleição decidiu concorrer a um prémio de poesia para autores-revelação recorrendo ao uso de um pseudónimo e (imaginem?!) ganhou o dito prémio.
Factos a registar:
1. Um prémio para autores-revelação não deveria ser um prémio para autores-revelação? - Que motivos terão levado um autor de mérito reconhecido concorrer a um prémio "menor"? Para mim, é como se a Mariza decidisse concorrer a uma eleição para jovens fadistas, recorrendo a outro nome, mas não a outra voz ou experiência...
2. A mensagem transmitida aos outros concorrentes que preeencheram os requisitos pré-estabelecidos para o concurso é a de que, afinal, em determinadas circunstâncias, podem ignorar-se os pré-requisitos. - Em que mundo vivemos nós? Em que mundo deseja o meu querido autor que vivamos?
3. O universo editorial não escapou à crise generalizada que se instalou um pouco por toda a parte e este ano que está prestes a terminar trouxe agitamentos confusos e fusões ainda mais desconcertantes. Terá sido uma estratégia editorial que levou o meu autor querido a participar em estapafúrdio concurso?

Depois de ser informada desta história, lembrei-me imediatamente de uma professora fantástica que tive no meu primeiro ano de faculdade. Ela dizia sempre para evitarmos conhecer pessoalmente os autores dos livros, uma vez que a pessoa de carne e osso não corresponde, na sua maioria, ao autor de papel, transmissor de uma sabedoria infinita e humana. Apesar de compreender o que nos dizia, fui incapaz de seguir o seu conselho e relacionei-me com vários escritores. Um deles este de quem agora falo. Além de lhe admirar a mestria de uso das palavras e do senso com que arruma o mundo, reconheço-lhe a simplicidade com que tem lidado com o sucesso; por isso é que é tão difícil aceitar que pudesse participar em algo tão descabido. Ao mesmo tempo, a razão de ser da nossa humanidade está no facto de cometermos erros, de não sermos seres irrepreensíveis ou dotados da verdade absoluta. Por saber disto, aceito o erro do meu escritor de carne e osso; aceito o erro dos jurados que, apesar de serem informados mais tarde do facto, o mantiveram em concurso; aceito também o erro daqueles que insistem em defender a atitude do meu escritor em nome da amizade; só não posso deixar de lembrar que a amizade e o amor são dois sentimentos que exigem mais do que palmadinhas nas costas.

domingo, dezembro 28, 2008

P.S. Depois de escrever o texto anterior, pesquisei na Internet sobre o quadro que ainda recordava e consegui encontrá-lo. A Internet faz maravilhas, desta vez, trouxe-me de volta uma amiga de infância. É incrível perceber que a minha memória reteve o mais importante deste quadro. O nome do pintor? G. Bragolin, parece que se dedicava a pintar crianças em lágrimas.

o ano novo ou o novo ano?

Não me lembro desde quando desvalorizo as comemorações do novo ano. Só sei que é desde há muito, talvez desde a época em que eu era tão menina e tão calada que passava horas a interrogar-me sobre o mundo à minha volta. Lembro-me, por exemplo, de um quadro que a minha avó tinha numa das paredes da sua sala, era uma tela enorme emoldurada por um doirado gasto. Na tela vivia uma menina com um penteado semelhante ao meu. Embora ela fosse loira e tivesse olhos verdes. Também tinha um xaile vermelho aos ombros e duas lágrimas no rosto. Sei que não eram as lágrimas que me levavam a ter a certeza da sua tristeza, era mais a profundidade do seu olhar, o beicinho pendurado nos seus lábios e a circunstância da sua solidão. Cheguei a chorar com aquela menina que não conhecia verdadeiramente, por ser uma menina aprisionada numa tela; porém, identificava-me com ela e todas as vezes em que a olhava tornava-me nela própria. Desconhecia as razões da sua amargura, muito menos o significado de «amargura», mas lembro-me, já nessa altura, de compreender a tristeza e de querer encontrar razões para a sua existência: deixaram-na ali, pensava. Deixaram-na ali sozinha e ela está triste por causa disso. Julgo que a solidão me afligia (continua a afligir-me ainda hoje, pelo menos a solidão que eu não escolho) ou quem sabe pensasse outras coisas que agora não consigo recordar; contudo, de uma coisa estou certa, passei horas a tentar, em silêncio, adivinhar as razões que estariam por detrás daqueles olhos tristes iguais aos meus. Não era uma miúda alegre como hoje sou uma mulher alegre. Pergunto-me, será estranho que sendo eu uma mulher alegre me faça confusão a euforia das comemorações do revéillon? Ou não serei eu, afinal, uma mulher assim tão alegre?
Não me lembro, de facto, desde quando sinto que estas comemorações são inúteis, como inúteis são todas as promessas que se fazem:
1. Não vou comer mais doces;
2.Vou deixar de fumar;
3. Vou deixar de cobiçar a mulher do meu amigo e/ou foder o marido das outras;
4. Vou viajar;
5. Vou tirar um curso;
6. Vou emagrecer;
7. Vou praticar ginástica;
8. Passarei a ir ao teatro;
9. Não vou adormecer em frente à televisão;
10. Não vou fechar os olhos e pensar em outras mulheres enquanto a minha própria me engoma a camisa que vou vestir no dia seguinte;
11. Não vou bater umas na casa de banho do meu escritório;
12. Não farei mais sexo virtual.

Na verdade, estas listas não são nada mais do que reminiscências deprimentes da nossa educação católica, que nos leva a acreditar que a vida é mais equilibrada e honesta quanto mais insípida ela for.
Recuso-me este ano em ceder à tentação de participar em festas só porque é suposto que nesta data se festeje seja o que for. Recuso-me igualmente em subir para cima de uma cadeira e devorar 12 passas (que odeio) para ter direito a pedir os meus 12 desejos - que a maior parte das pessoas esquece dois minutos depois - e recuso-me ainda mais a estar na companhia de pessoas que se encontram em exaltação total só porque estão certas da inauguração de um novo ano. Pois, este ano quero ceder apenas à tentação de estar comigo mesma, provavelmente numa praia qualquer, a olhar o mar e a imaginar a vida que existe dentro e fora dele. Este ano exijo que a minha solidão se concretize e seja uma escolha própria, como a roupa que vestirei em seguida. Uma escolha como outras que faço na vivência quotidiana dos meus dias. Uma escolha que me pertence em exclusivo. Tenho dito.

quarta-feira, dezembro 24, 2008

amor e poesia

perdoa-me. perdi-me de novo.

não ouvi dizer-te que fazer amor comigo é como escrever poesia. mas é, eu sei que é. também sei que as palavras te doem por dentro, é por isso que as guardas onde ninguém as espreita. não podes censurar-me por descobrir o que gostarias de dizer-me, não podes... se soubesses, dir-me-ias que fazer amor comigo é como escrever poesia. as diferentes posições são como a busca incessante pela palavra certa. as mãos que me afagam é como se procurassem o ritmo que as palavras exigem. as músicas são as ninfas dos poetas: inspiradoras! eu e tu escrevemos poesia juntos. eu sei que sim; apesar de nunca te ter ouvido dizer que fazer amor comigo é como escrever poesia. nunca disseste que fazer amor comigo é como escrever poesia. é porque nunca fizeste amor comigo? ou é porque fazer amor comigo não é como escrever poesia? eu gosto de acreditar que sim. e como nunca dizes o que as palavras são capazes, invento que oiço a tua voz dizer-me que fazer amor comigo é como escrever poesia. nesse instante, em que oiço a tua voz que invento, oiço também as palavras que nunca me dirás, dizendo-me: fazer amor contigo é como escrever poesia.

perdoa-me. mas tenho a sensação de que me perdi de novo.

terça-feira, dezembro 16, 2008

Digam: 33!

Tenho medo de confessá-lo. Ou talvez não seja medo, mas vergonha. Não, também não será vergonha. É mais a verdade sobre aquilo que penso deste processo que me atinge aos poucos: o envelhecimento. Não tenho medo de morrer; a morte não me assusta mais do que, por exemplo, uma trovoada gigante ou não me arrepia mais do que uma barata grande e preta a passar-me por baixo dos pés. O envelhecimento... bem, pensar no envelhecimento faz-me tremer por dentro. Será que é por isso que olho para os velhos com um reconhecimento implícito e que me apetece abraçá-los e dizer-lhes que a vida também deve poder ser bonita após as rugas; com a reforma e a independência dos filhos?


Hoje faço 33 anos e sinto-me feliz.

sexta-feira, dezembro 12, 2008

A Mãe do meu Filho

Foi um amanhecer como outros. Menos cabelo, talvez, por razões de corte na noite anterior. Acordei-o, aos pulos. Ainda de olhos fechados, disse-me qualquer coisa como: Boa, não tenho uma irmã de dois anos, tenho uma mãe de 32! Sorri. Sei que me disse isso com a satisfação de poder ter-me aos pulos, na sua cama. Entendemo-nos. Respeitamo-nos. A surpresa veio de mansinho, inesperada, enquanto lhe assinava uns testes para ele devolver às professoras. No teste de Inglês, na parte da composição, li no título: My Mother. Não emoção de lê-lo, as lágrimas e o reconhecimento por ignorar-me as falhas (imensas, gigantes), valorizando o amor. Reescrevo o texto do Rodrigo por vaidade, por pura vaidade. Mas também para que eu nunca esqueça que um dia ele me olhou assim:


My Mother

My mother is tall and slim, she paints her hair blond but it is trully dark. She has brown eyes and she is tender and also sweet. Her name is Sónia. She likes to talk with her friends, she likes to cook and she also likes her work.
She is funny, she thinks "out side of the box", she is a great mom and i get on very well with her. We talk, we play with each other, we go to the cinema and we teach ourselves the things we know. I just love her so much! She is a manager at EP- Estradas de Portugal. She was also a reviser at the magazine TV 7 Dias.

terça-feira, dezembro 09, 2008

Folha BRANCA




Há vento lá fora. E um azul imenso, infinito. A água do rio tem pequenas ondas brancas, da espuma. Parecem cardumes de peixes, essas ondas pequenas. As árvores dançam ao som do vento, que lhes canta uma melodia apressada. Fora desta paisagem, existo eu. Talvez hoje pudesse ser uma daquelas árvores que vejo daqui, por uma nesga de claridade e vidro. Ou talvez pudesse ser uma daquelas ondas pequenas e curtas, de espuma branca; revoltas de encontro à água. Hoje acordei com uma sensação de turvidade esquisita. As pessoas incomodam-me. As vozes das pessoas incomodam-me. Os risos incomodam-me. O som dos risos incomoda-me. Apetecia-me abrir os braços e ficar entregue ao vento, exactamente como aquelas árvores lá fora. O vento desgrenharia as minhas emoções, que precisam de uma arrumação desalinhada.




Há medo aqui dentro. Há tristeza. Há solidão. Há desconforto: e dentro desta paisagem, existo eu. Mais do que árvore, onda ou espuma, sou uma folha branca, rasgada aos pedaços e atirada ao vento que sopra.


foto: flickr.com/photos/patchetudo/2523527675




terça-feira, dezembro 02, 2008

Eu sei o que é, mas não digo

É o frio que nos desconforta os sonhos. São as pessoas nas ruas à procura de tudo. Também de nada. São as luzes que iluminam as ruas - na Liberdade, as lágrimas são de luz e escorrem pelos rostos cansados das árvores. São as lojas em frenesim, antecipando ganhos. São as pessoas em frenesim, advinhando gastos. São as crianças em frenesim, ignorando custos. É o bolo-rei. São os azevinhos. São os sonhos. É a torta de chocolate, o bacalhau, as couves. É a toalha de mesa vermelha e dourada. É a árvore com enfeites. São as luzes a piscar. São as prendas que se pensam. Mais as que se dão. E aquelas que se recebem. São os sorrisos nos lábios. Tantas vezes, é a tristeza nos lábios daqueles que ignoramos, não por maldade, mas por desconhecimento. É a solidariedade. É o pai natal gordo e barbudo em cadeiras luxuosas dos centros comerciais. São os sinos da igreja. É a missa do galo. São os pedaços de papéis espalhados pelo chão. É a rena Rudolfo. São os trenós e os duendes. É a verdade e a mentira de mãos dadas. É o som dos brinquedos novos aos magotes. É o constante "Falta muito?" das crianças, nossas e dos outros. São os primos, os tios, os avós, os pais, os irmãos, os sobrinhos e os filhos amontoados, parecendo um. É a minha família. É a nossa família. É a família de toda a gente. E é o amor. É o amor que não resiste ao encanto frutado da época. É isto. É aquilo. É isto e aquilo e o que se quiser. Melhor, o que dele se fizer...

segunda-feira, novembro 24, 2008

Coimbra

Quero chamar-te Amor, mas tenho medo que as palavras te firam por não poderes chamar-me Amor na volta. Quero chamar-te, Meu amor, só que temo que aquilo que oiças não seja aquilo que verdadeiramente te digo. Quero dizer-te desapressadamente que não quero ter pressa sempre que damos as mãos e entrelaçamos os dedos de um nos dedos do outro. Quero poder dizer-te sem culpa que nunca pude ser feliz como sou. Também preciso dizer-te que olhos, lábios, língua não achei em nenhum outro como agora acho em ti. Melhor, não me achei em nenhum outro como me acho em ti. Gosto de perder-me nas curvas do teu corpo para me encontrar nas curvas do meu. Gosto do silêncio que se instala por as palavras serem pequenas demais para dizerem o que é grande demais. Quero gritar no penedo da saudade a saudade que tenho de nós dois por saber que jamais seremos só nós os dois. E deixar numa pedra inscrita a dor que sinto nascer na hora da despedida. Ou quereria dizer-te tudo isto se isto não fosse um amontoado de palavras a darem consistência a um lugar. Esse lugar onde a saudade é dita para expressar um amor maior.

A gravata vermelha


Concentrei-me na gravata vermelha. Apesar de ser apenas mais uma gravata vermelha, não maior do que outras que já vira, nem menor; não mais bonita ou sequer mais feia, apenas uma gravata vermelha a cumprir a sua tarefa de ser uma gravata vermelha - embora me dissesse sonhos e fantasias ao ouvido. Se uma gravata pode dizer coisas? Pode. Não uma gravata qualquer, mas uma gravata vermelha. Acreditem-me. Eu não minto. Muito menos sobre gravatas vermelhas dizedoras de sonhos e fantasias.


quinta-feira, novembro 20, 2008

Depois de mim

Morrer é preciso. Morrer não faz parte do leque infindável de escolhas que temos de fazer ininterruptamente. Acontece. Dá-se. A morte não se escolhe, insisto. Nem sequer o momento em que ela se impõe. Já me imaginei morrer, melhor, já me vi morrer de mil e uma maneiras. Há umas que me agradam mais do que outras: afogada, não obrigada. Queimada muito menos. Por acidente jamais. Talvez doente, no recobro de um olhar que me abrace, sem sequer os braços se imporem.
A verdade é que sei que a vida continuará depois de mim. Não igual, necessariamente diferente, não porque eu tenha deixado de existir, mas porque nada permanece igual, nem aquilo que julgamos permanecer. As flores de todos os jardins continuarão a crescer. As crianças sorrirão uma e outra vez. O sol nascerá para os outros, os que ficam. A minha casa continuará no mesmo local, ainda que não seja mais minha. As roupas terão o meu tamanho e o meu cheiro, só lhes faltará o meu corpo a sustentá-las. A música que hoje oiço continuará a ser ouvida. Os filmes que vi e dos quais me tornei parte serão continuamente vistos e farão parte de outros que não eu. A minha família sentirá a minha falta e dirá coisas como vou ter saudades dela. era tão boazinha, todavia, eles continuarão a sentir-se parte de uma família que em tempos também me pertenceu. As solas dos meus sapatos tornar-se-ão inúteis, assim como tudo o que me pertencia: a escova de dentes, os anéis usados no dedo anelar da mão direita, jamais em outros, os brincos. Os livros, os meus livros que são meus porque têm as marcas que lhes pus, como uma mancha de chocolate numa das páginas ou a areia da praia perdida entre palavras impressas. Só que morrer é preciso. E eu sei que morrerei também no rosto de todos os que amei. Embora a minha vida seja somente o amor que sinto; espero que esse amor não morra comigo, mesmo que morrer seja preciso.
Fim

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir

Mário de Sá-Carneiro(1890-1916)
P.S. A ironia da vida é imensa. Enquanto escrevia este texto, a minha mãe ligou-me a dizer que o pai da minha prima Sara faleceu. A Sara já não tem mãe. Agora também já não tem pai.

segunda-feira, novembro 17, 2008

Fado

O fado tem uma tradição antiga em Portugal. Não conheço a sua história, mas não penso que isso seja importante ou, pelo menos, que interfira naquilo que o fado me proporciona. Sei que a palavra tem uma abragência maior dos que os homens, pois para além de designar a canção tradicional de Coimbra e Lisboa, quer dizer destino, sorte, providência. Não tenho qualquer interesse em esmiuçar os significados da palavra, mas sim falar sobre este gosto particular e característico que tem crescido para dentro de mim, à semelhança das raízes das árvores, que crescem no sentido inverso do tronco, dos ramos e das folhas. Há um gosto particular e íntimo na forma como tenho escutado fado ultimamente. Outro dia, em passeio pela Fnac do Chiado, de mão dada com o Rodrigo, dei por mim parada, fixada num ecrã de televisão onde passava a apresentação de Fados, um filme realizado pelo cineasta espanhol Carlos Saura e que faz parte de uma trilogia que se iniciou com a realização de outras duas obras cinematográficas sobre flamenco e tango. Deixei de ouvir o que se passava à minha volta, sem que isso fosse consciente ou imposto. Aconteceu... simplesmente aconteceu; como quando sentimos calor e procuramos sombra, ou quando sentimos frio e nos enrolamos num abraço próprio. Não me lembro de ouvir fado a primeira vez, terá sido Amália, decerto. Digo isto porque a minha avó materna ouvia-a frequentemente. Lembro-me, aliás, de um disco que o meu avô lhe partiu, numa das muitas sextas-feiras em que chegava bêbedo a casa. É verdade que não me lembro da primeira, mas lembro-me da última. Chuva ecoa ainda nas paredes caiadas de que sou feita e a voz da Mariza traz-me o fado em desatino: "As coisas vulgares que há na vida/ não deixam saudades/ só as lembranças que doem ou fazem sorrir (...)"

sexta-feira, novembro 14, 2008

Lisboa

As luzes apagadas. O silêncio como névoa. A sombra dos móveis nos sons dos passos que se temem. Duas margens fundidas no espraiamento de uma cidade ao luar.


Lisboa, esta noite tiveste-me só para ti. Fui tua em alma e ouvi o teu canto de cidade como nunca antes.



Lisboa, foste o reflexo dos meus olhos,

imaginado mil vezes antes de ti.
só te peço, Lisboa, que não te esqueças - nem nos
boémios dias que hão-de vir -, de
ouvir a vida, não a de ontem, mas
a que me deste hoje a mim.




TU

Tenho as mãos manchadas de sangue: voltei a matar.


Este texto tem hoje a responsabilidade de existir. Ele escreve-se por si, independentemente das teclas que eu escolha ou do que o meu pensamento sugira. Teclo na palavra EU mas é a palavra TU que fica escrita. O texto redige-se a si mesmo, sem que eu possa contrariar ou interferir no seu rumo. A teia vai sendo construída para além da minha vontade. Escrevo TRISTE e TRISTE não aparece em lugar algum. Em vez disso, há palavras no ecrã que nem sei o que significam. Inventam-se e recriam-se, tornando-me eu alheia ao processo que deveria partir de mim. Eu quero escrever TRISTE. Deixa-me escrever a palavra TRISTE, por favor. Tenho de escrever TRISTE. E continuamente aquele TU a impor-se mais do que seria desejável. Este texto quer provar-me que é mais forte e mais capaz do que eu. Que, na verdade, a palavra TRISTE não é assim tão importante. Insiste em revelar-me a minha impotência, diante de um bando de palavras que se perfilam à frente dos meus olhos, por baixo dos meus dedos teclantes. E a palavra TRISTE que me confortaria não existe, desaparece no confronto suspenso com a palavra TU.
Tenho as mãos inundadas pelo sangue de inocentes. Lavo as mãos, mas o cheiro não desaparece.

terça-feira, novembro 11, 2008

Os Sinais e o Fogo

Há sinais que escutamos devagar, outros que, sem os escutar, chegam de mansinho e nos revelam mais do que gostaríamos. Há fogos que nos arrebatam por dentro e nem a água gelada que lhes deitamos por cima os faz desvanecer; ou os transforma em cinza, matéria sobrante do que foram e não podem ser mais. Há sinais antes dos fogos. Há fogos depois dos sinais. Os sinais são sempre nossos e de outros também. Os fogos não podem ser objecto de pertença; vão e vêm, para nos avisar que estamos vivos e que o "caminho se faz caminhando", sem a serventia dos atalhos.


E quando os sinais são de fogo?



Sinais de fogo


Sinais de fogo, os homens se despedem.
exaustos e tranquilos, destas cinzas frias.
E o vento que essas cinzas nos dispersa
não é de nós, mas é quem reacende
outros sinais ardendo na distância
um breve instante, gestos e palavras.
ansiosas brasas que se apagam logo.


Jorge de Sena
in Visão Perpétua
Julho/Agosto 1967





domingo, novembro 09, 2008

Fácil de Entender

Esta sexta-feira, fui jantar ao Bairro Alto com os meus alunos estrangeiros do curso de português. Quisemos despedir-nos comemorando a vida que existirá para cada um de nós, após o final do curso. E, sobretudo, quisemos misturar as nossas vivências num pote que não se confina a uma sala de aulas de uma das mais bonitas faculdades de Lisboa: o Instituto Superior de Agronomia.
Entre conversas e risadas em inglês, português, polaco, espanhol e italiano, houve dois alunos, o Pawel e o Marek, que me diziam, em tom confidente, que ouvem a canção Fácil de Entender, dos The Gift, mesmo antes de adormecerem, usando aquela canção como música de embalar dos seus finais de noite. Registei este momento por duas razões, a primeira, e a mais imediata, porque me trouxe a convicção de que uma língua não deve ser ensinada sem estar integrada no seu património cultural; uma vez que dele faz parte. Foi por desconfiar disso mesmo que fiz questão de, no final de cada aula, partilhar com eles música portuguesa, assim como poesia, perseguindo o objectivo de enquadrar a língua que lhes ensinava no património que a configura. Dei-lhes a ouvir Mariza, Luís Represas, Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade, Paulo Praça, Santos e Pecadores, assim como The Gift. E agora, Pawel e Marek não adormecem sem ouvirem Fácil de Entender, essa canção que escutaram pela primeira vez nas aulas de português. Eles até podem sentir dificuldade em entender o que as pessoas na rua dizem, mas a verdade é que escolhem uma música portuguesa para lhes aconchegar os sonhos. A segunda porque, a não existir mais nada que me garantisse que fiz o meu trabalho bem, isto bastaria para me sentir segura da minha prestação. Está fácil de entender...

domingo, novembro 02, 2008

Eterna SAUDADE

Eterna Saudade. Amor de mãe, irmão e sobrinhos. Foste o nosso anjo na terra, agora és um anjo no céu, nunca te esqueceremos. Com amor, para sempre.

Os cemitérios são o consolo dos vivos. E são os velhos que mais facilmente vagueiam por lá, talvez porque a morte, para eles, não seja qualquer coisa de que se oiça falar, mas a matéria dos dias que se aproximam depressa demais. Aos magotes, apropriam-se do espaço e transformam aquela ida em visita familiar e amiga à casa dos que são agora meras fotos e mensagens alinhadas em campas sobre a terra.

- Já foste ao Eduardinho? O filho mais novo da Emília que morreu, o ano passado, num acidente de moto. Coitadinho!

"Coitadinho" é o ponto final para todas as frases ditas no cemitério.

- Se eu soubesse onde era ia lá, coitadinho. Aquela mãe, meu deus, o que sofreu aquela mãe. Coitadinha.

Acompahei a minha avó e a minha mãe pelas ruelas do cemitério, dei o braço à minha avó e deixei que ambas me conduzissem por aquele lugar que conhecem melhor do que eu. A visita começou pelo meu padrinho, falecido em Agosto do ano passado. Vi a campa dele pela primeira vez, tinha uma foto de quando ele era verdadeiramente o meu padrinho e não aquele monte de ossos, dos últimos dias, que rangiam a cada passo e que se cobriam com um blusão de ganga sujo e gasto. Ver a foto dele ali, naquele lugar, fitando-me com olhos robustos e vivaços deu-me vontade de abraçá-lo, tê-lo comigo e ouvi-lo dizer aos meus ouvidos "a minha menina". Ridiculamente, baixei-me sobre a campa, mais precisamente sobre a foto, e imaginei que me abraçava. A minha mãe deixou-lhe uma rosa vermelha gorda, embrulhada em papel de crepe verde, com o autocolante da florista, e pô-la ao lado da foto e das mensagens de pesar da família.
Continuámos a peregrinação e fomos à campa do meu primo Tó. A minha mãe e a minha avó também deixaram lá as flores que traziam para ele. Eu entretive-me a ler as mensagens que as minhas primas encomendaram na altura. Chorei. Não como quando estou triste e zangada com o mundo; chorei devagar, serenamente, lembrando o amor e como esse amor nos rasga por dentro ao sermos obrigados a dizer-lhe adeus para sempre. Entretanto, com as lágrimas ocultadas pelos óculos escuros, ouvi a minha avó dizer:
- Adeus, meu amor, até para a semana. Ela despedia-se do Tó como nos dias em que ia visitá-lo a casa. Ouvi aquela mesma despedida vezes sem conta e ela repetia-o exactamente com a mesma ternura como no tempo em que dele obtinha respostas.
O cemitério é mesmo o consolo dos vivos. Percebi isso quando, ao caminhar em direcção à visita que nos faltava, o tio Isaque, os meus olhos teimavam em fixar-se no lugar onde, em tempos, esteve enterrada a minha avó Maria. Mas ela já não está ali, levaram-na, atiraram os seus ossos para o meio de outros tantos. A família do meu pai não é crente, por isso, optaram pela vala comum. Porém, hoje quis que aquele fosse ainda o seu lugar; egoisticamente, os meus olhos procuraram por ela, embora conhecessem a sua ausência. 12 anos após a sua morte, hoje foi talvez o dia em que mais senti a sua falta.
Estas idas ao cemitério mexem mais comigo do que eu gostaria. Não sou religiosa, aliás, nada. Não sei rezar, não acredito em deus e não frequento lugares de culto. Todavia, não posso deixar de admitir que aquele ambiente me perturba. Vi um rapaz, de joelhos no chão, de livro aberto entre as pernas, a ler para uma campa vazia. A verdade é que só para mim é que ela está vazia; para ele, está ali sob a terra um riso, um cheiro, uma voz que ele conheceu e amou.
O cemitério é o consolo dos vivos. É por isso que eu não me senti consolada. A minha morta, a que eu desejava visitar, aquela a quem eu conhecia o riso, o cheiro e a voz não habita mais aquelas terras. Eu entrei e saí de mãos vazias.

sexta-feira, outubro 24, 2008

Uma Aventura na Ponte 25 de Abril

Descobri que a Ponte 25 de Abril é suportada por cabos que são constituídos por mais de 11 mil fios de aço. A verdade é que não descobri isto apenas, tive a oportunidade de tocar-lhes, pois estive no lugar onde esses fios se encontram seguros.
De cada vez que visito a Ponte 25 de Abril descubro coisas novas sobre a sua construção ou a sua manutenção. Dentro dos seus pilares, subindo e descendo por escadas de bombeiros sem qualquer protecção extra, em que os buracos por onde passa o meu corpo formam crateras sem fundo por baixo dos meus pés, sinto como se estivesse a viver uma aventura da colecção juvenil Uma Aventura, das autoras portuguesas Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães. Já imaginei mil enredos para aquelas paragens que muitos utilizam na travessia do Tejo, mas que muito poucos tiveram a oportunidade de conhecer por dentro, como eu agora conheço.
É impossível não me sentir privilegiada por poder estar na ponte sob uma nova perspectiva. Nem sei explicar aquilo que se sente, a 200 metros do solo, tendo Lisboa e Almada como fundo e horizonte. Lá no alto dos pilares, guardamos a sensação de que é fácil tocar nos aviões que estão prestes a aterrar no Aeroporto da Portela. Lá no alto também nos sentimos parte de tudo, ainda que longe de tudo. Gostava de levar lá para cima o meu caderno e escrever, sei que as palavras teriam outra consistência que aqui em baixo não têm. E depois, quem sabe?, elas seriam levadas pelo vento e seriam lidas por pessoas à janela, que as agarrariam e as tornariam suas? Ou que na resposta me diriam: anda, vem voar comigo, e se por acaso eu cair, amparas-me na queda...

terça-feira, outubro 21, 2008

Não gosto de casamentos. Também não gosto de baptizados, mas muito menos de casamentos. Falo, como é óbvio, da festa em si, não do que ela representa; até porque para uma romântica incurável, nada é mais bonito do que a celebração do amor.
Chateiam-me, por exemplo, os protocolos a que essas cerimónias obedecem. As pessoas obrigadas a enfiar-se em vestidinhos (ou fatos) de cerimónia, a quererem parecer confortáveis, quando, na maioria das vezes, não se identificam com a roupa que trazem, nem com os penteados que usam e muito menos com os sapatos novos e brilhantes que lhes aperta os pés até à exaustão.
Aborrece-me igualmente o som irritante dos garfos nos pratos a pedir que os noivos se beijem a toda a hora, para satisfazer o desejo voyeurista de alguns. Também não tenho grande paciência para a sessão fotográfica que condiciona noivos e convidados à tirania do clic. A verdade é que julgo que as pessoas esquecem-se, às tantas, do verdadeiro objectivo do casamento; esquecem-se ou confudem-no. Lembro-me de uma frase dita pela Carrie (a Suka não permitiu que eu a esquecesse) no filme Sexo e a Cidade: "I let the wedding get bigger than Big". Ou seja, o casamento não pode ser um fim em si mesmo - dos últimos casamentos a que fui, um acabou ao fim de seis meses e outro ao final de um ano.
O casamento mais bonito a que assisti foi, de longe, o dos meus tios. Após 25 anos de vida em comum e de uma união civil, resolveram renovar os votos dizendo "sim" um ao outro numa igreja, rodeados da família e amigos, inclusive dos filhos, também já eles em idade de casar. Foi talvez a cerimónia menos faustosa, menos glamourosa, mas definitivamente aquela que me causou um friozinho no estômago e me proporcionou as lágrimas mais sentidas e inteiras.
Este sábado vou a um casamento, ao do meu primo André; finalmente, terá direito a uma família sua, que lhe pertencerá em exclusividade. A dele nunca lhe pertenceu ou se pertenceu, ele nunca deu por nada. Nem no dia do seu casamento dará, uma vez que a maior parte disse não ao evento! Eu estarei por lá, a lembrar-lhe que apesar de não gostar de casamentos, ele é quem me importa e não perdia por nada o momento de ouvi-lo dizer: prima, estou feliz.
Um dia quero olhar nos olhos de alguém e sentir que o que existe é tudo o que deveria existir: nem mais nem menos.

sexta-feira, outubro 17, 2008

APICECTOMIA

A agitação. Os telefonemas cá e lá. A tentativa de perceber se a voz revela medo ou ansiedade. O fingimento de que se parte do pressuposto de que tudo correrá bem. A sombra de que tudo pode correr mal a condensar-se, como nuvens de chuva, por cima das nossas cabeças, talvez do nosso coração. Um telefonema a dizer Dormiste bem? Estás nervosa? Sabes que gosto de ti. A resposta que se faz ouvir: Sim. Não. Eu também gosto muito de vocês. Uma despedida que não se quer, nem se anseia, mas que se impõe. Um adeus não para sempre, mas até daqui a bocado. A vida a não permitir mais do que isto; e ainda que permitisse, saberíamos mais do que isto?
Tive vontade de abraçá-la. A minha voz abraçou-a, julgo, no instante em que lhe disse: Gosto muito de ti. Quero que saibas que vou estar a em pensar em ti e que desejo que tudo corra pelo melhor.
Hoje, às 20.00 horas, a minha mãe entra para o bloco operatório. Eu estarei a alguns quilómetros de distância, porém, será como se estivesse do lado dela, a segurar-lhe a mão e a falar-lhe ao ouvido coisas da nossa história. Coisas que a façam sorrir e esquecer a puta da doença que a consome aos poucos.

Minudências do ensino do português

1.º Se da palavra "cabelo" deriva a palavra "cabeleireiro"; de"barba" deriva "barbeleiro"? - questão colocada pelo meu aluno eslavo na última aula do curso de português.



2.ª O buraco que temos na barriga chama-se umbico? Um bico?!? Não... o som é semelhante, mas "um bico" é outra coisa em português. É mesmo é "umbigo".


3.ª "O que é caralho?" - pergunta de uma aluna italiana, pois estava intrigada com a frequência com que ouvia a palavra nos corredores da faculdade.


Nota: Procurei dar resposta a todas as questões (não sem corar algumas vezes). A estes alunos, ávidos de conhecimento, não se pode responder de forma evasiva ou dizer-lhes que sobre esse assunto é melhor não falarmos. Eles estão aqui, em Portugal, pela primeira vez, logo, o seu interesse é reter da língua aquilo que precisam para a sua vivência diária. E, parece-me, "um bico" e "caralho" dão-lhe mais hipóteses de se misturarem entre os autóctones do que saberem de cor as contracções das preposições com os artigos ou que existe qualquer coisa como pretérito perfeito, imperfeito e mais-do-que-perfeito. Ã?????!!!!!

terça-feira, outubro 14, 2008

Porque há dias assim

Há dias em que nos sentimos bem. Em que o acordar não é demorado nem sofrido, em que a água pelo rosto não é fria e a roupa que tiramos do armário não tem nódoas, não sendo necessário escolher outra. Há dias em que os passos que damos, são passos dados em relação ao futuro, que nos aguarda, solidário. Há dias em que o nosso rosto não se cansa de nós e nos devolve em beleza o que lhe gastamos em vida. Há dias assim...
Há outros, porém, em que acordar é um exercício de guerra civil - não há pior combate do que aquele que empreendemos contra nós mesmos -, em que a luz da rua não nos motiva, em que a fala dos outros que amamos não nos reconforta, em que o futuro nos parece tão distante e tão impossível que as lágrimas e a tristeza nos vencem. Há dias em que acreditamos que os dias vão ser sempre assim.
Desejava que hoje fosse um bom dia. Mas não é. Nem este texto tem as palavras que eu desejei que tivesse. Triste dia triste. Triste texto traste.
Só porque há dias assim...

quinta-feira, outubro 09, 2008

HOJE

HOJE queria ser pássaro, bater as asas contra o infinito azul e intoxicar-me de liberdade. Só que HOJE sou apenas uma mulher entre tantas sem nada de especial para dizer, fazer ou até oferecer. É por isso que HOJE me apetecia ser pássaro, descer do céu a pique e lançar-me, vertiginosamente, ao mar. Pois HOJE não consigo ser maior do que eu própria nem parecer inequivocamente feliz. Sei que é por isso que HOJE trocava a minha pele por penas e a minha consciência pela inconsciência de voar sem rumo.
A minha salvação? A certeza de que HOJE será, não tarda nada, ONTEM.

quarta-feira, outubro 08, 2008

SAUDADE

O SOM de uma porta que se fecha e a BRISA de ninguém que paira no ar.



a sala vazia. a cozinha vazia. o quarto vazio. a CASA vazia.




a saudade aperta aí, antes da casa VAZIA e depois da porta FECHADA.

terça-feira, outubro 07, 2008

O vírus do passado a querer fazer-se presente

Não sei o que se passa, mas será com certeza uma virose. De repente, sem que nada o previsse, sou bombardeada por mensagens telefónicas de pessoas que fizeram parte da minha vida há algum tempo atrás. Ou porque sentem a minha falta, ou porque querem ver-me... E eu penso, será que estas pessoas julgam que a minha vida parou no momento em que lhes disse adeus? Não parou, aliás, nunca pára. Sou demasiado impaciente para ficar no mesmo sítio muito tempo. E sou extremamente boa a arrumar histórias. Por mais importantes que tenham sido. Como é óbvio, há umas que demoram, que permanecem mais do que o normal, que me habitam por dentro, que me assombram a esperança; só que existe sempre aquele momento em que fico novamente só comigo mesma, então percebo: já não há volta a dar.
Nunca tive (pelo menos até agora) vontade de reviver uma história de amor. E acredito que não terei. É preciso vocação para reconstruir o que ficou gasto pelo tempo, sujeito às intempéries, ao musgo e à humidade. Eu sou mais de arregaçar as mangas e construir o que há para construir de raíz; aí perco tempo, invisto, suo, sujo as mãos, o corpo, a alma, dou-me inteira, como se fosse a primeira vez, ansiando que seja a última.
Enfim... cada um é para o que nasce. E eu sei que nasci para o amor, mas sempre para aquele que está por vir, por acontecer. Não podemos ser todos iguais; eu sou assim, o que fazer?!

segunda-feira, outubro 06, 2008

Quem sou eu, afinal?

EU sou areia. Sou os passos de gente marcados na areia. Sou os grãos da areia. Sou os grãos da areia remisturados em si mesmos. Sou areia por fora, mas areia por dentro também. Sou o sol. Sou o riso das crianças felizes. Sou as gargalhadas dos ignorantes. Sou o amor. Sou a vida dos outros - muito pouco a minha própria. Sou os passos ligeiros das acácias, a luz tímida das buganvílias. Sou Lisboa. E sou o amor. Sou a pele enrugada dos velhos. Sou o beijo apaixonado dos amantes. Sou a amante. Mas também o amador. E só poucas vezes a coisa amada. Sou conversas atiradas por cima do futuro. Sou o futuro assustado com o vazio. Sou as horas em viagem. E sou o amor. Sou o cão que guarda o quintal. Sou o quintal que enfeita a casa. Sou a casa que recebe a família. Sou família. Sou os olhos do meu pai. O sorriso da minha mãe. Sou os cabelos da minha avó. As orelhas do meu avô. Sou tanto o amor. E sou o mar. Sou as ondas da manhã engasgando-se com a areia. Sou os barcos e os rastos dos barcos. Sou o horizonte, ao fundo. Sou o longe. O perto. E sou o amor. Sou as gaivotas à deriva. Sou a espuma. Sou o pó. Sou o vento. Sou a chuva. Sou os pingos da chuva, nas manhãs de Outubro. E sou Dezembro. Sou as montras cheias de luz, em Dezembro. E as ruas da cidade iluminadas e enfeitadas. Sou o Natal. E sou só amor, amor, amor. E não consigo, por mais que devesse, viver de boca fechada. Sou confissão inocente. Sou dizedora de afectos. Sou desbragada. Sou palavra. Sou diálogo. E sou... amor. Sou amor nos poros da pele. Sou amor no ar que respiro. Sou amor na ponta dos dedos. Sou amor no beijo que troco. Nas palavras que confesso. No toque das mãos. Sou amor no embate de peles nuas. Sou amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, AMOR.

quarta-feira, outubro 01, 2008

Hino à minha mãe

Qual é o valor da vida humana? Qual é? Qual?
A minha irmã abraçou-se a mim a chorar, eu senti o seu corpo frágil sustentado pelas minhas mãos vazias de tudo. Só consegui dizer-lhe: "se ela desistir, se ela tiver já desistido, a única coisa que podemos fazer é aceitar a sua decisão e sermos fortes ao mesmo tempo que ela. Estás a ser egoísta, ela não pode querer a vida só porque para nós seria insuportável viver sem ela." Quis parecer maior, recusar-lhe o direito à dor, revelar-lhe a sua pequenez, mas cada palavra me foi devolvida com violência. Tenho no meu corpo a marca de cada uma das palavras que usei contra a minha irmã. O que estava eu a dizer? Que sou capaz de aceitar a sua desistência? Que gosto mais da minha mãe do que a minha irmã? Que sou capaz de vê-la desistir e acompanhá-la nessa decisão porque isso me faz generosa, solidária? Ridícula. Sou neste momento a mais ridícula de todas as mulheres. Foi só preciso entrar no carro e ouvir o som da solidão, para o medo me levar às lágrimas e as lágrimas me levarem ao medo. Sou cobarde, grito para dentro e o que sai para fora já vem tão distorcido que não se manifesta por ondas sonoras, só através do que agora escrevo. Em vez de guardar em mim o segredo da dor e do medo, exponho-o. E porquê? Porque não passo de uma menina assustada a gritar por socorro.
Qual é o valor da vida humana? Qual é? Qual?
Eu não sou generosa e também não sou solidária. Sou apenas uma filha assustada com a doença da mãe. E no fundo sei bem que serei incapaz de perdoar-lhe a desistência, no fundo, sei que os meus dias terão no seu reverso a amargura de sabê-la fraca, vendida ao caminho mais fácil. É só por isso que não corro para os seus braços implorando-lhe a coragem que me falta sempre que a vejo debilitada.
Qual é o valor da vida humana? Qual é? Qual? Quanto vale a minha mãe? Quanto deve pesar o amor de um filho? Que distância deve existir de um coração ao outro? Que peso têm as minhas lágrimas choradas? E as por chorar? Quanto tempo se deve esperar por um abraço? Que espaço ocupa a ausência? Quem me abraça agora? Quem se calará para sempre? Quanto tempo aguento eu sem chamar por ti, mãe? Quando é que isto acaba, mãe? Quando é que te vejo feliz, mãe? Quando é que regressas para nós, mãe? Quando é que me abraças, mãe? Quando é que percebes, mãe, que és a estrutura, a base e as paredes desta família que criaste, mãe? Mãemãemãemãemãemãemãemãemãemãemãemãemãemãe. Estou exausta, mãe. Vou dormir, mãe. Amo-te, mãe. Para sempre, mãe. Como só a ti poderia, mãe.

terça-feira, setembro 30, 2008

O sentido trágico

Acho que foi assim que entrei dentro da sala de aulas, talvez tenha sido assim que olhei para eles sentados à minha frente, ou minutos depois, quando já tinha as mãos completamente sujas do pó do giz, senti nesses momentos aquilo que procuro ignorar a maior parte do tempo: que a minha vida só ganha uma dimensão verdadeira ao vestir a pele de professora de português. Não é que me sinta um peixe fora de água na vivência do meu quotidiano, nem pensar nisso; é apenas ter a noção de que a minha vocação cumpre-se ali, a ensinar.
Ando extraordinariamente cansada e o extraordinário tem aqui o sentido literal de "mais do que o normal", a verdade é que não podia deixar escapar esta oportunidade, mesmo que me obrigue a uma dedicação personalizada. Os materiais são todos pensados e criados por mim, do zero, uma vez que a bibliografia existente é insuficiente e, não raras vezes, pouco profícua. No sentido oposto, diria que as conquistas que vou fazendo; melhor, que eles vão fazendo, possibilitam-me uma sensação de vitória mais ardente e apaixonada.
Um barco acaba de deixar na água a marca da sua passagem, um risco indelével, pouco perceptível na distância. Se eu tivesse de descrever o teu efeito em mim (que não tenho, mas quero) diria que tu és o barco e eu sou a água. Tu deixas-me, ó asa-de-corvo, a herança indelével e eu, como resposta, permito que a espuma das minhas águas enfeitem o teu percurso, tornando-o mais belo.
É engraçado, com uma preponderância trágica, que eu não possa desenvolver a minha acção profissional no sentido da minha formação universitária; é curioso, também com uma preponderância trágica, que os professores sejam os indigentes das profissões liberais e é sobretudo admirável, com um sentido trágico total, que eu mantenha a convicção de outrora - e alguma esperança também - de que o meu lugar é dentro de uma sala, a ensinar e a aprender, a ser cada dia mais velha junto daqueles que serão, em mim, cada dia mais novos.

sexta-feira, setembro 26, 2008

Regresso aos bancos da escola

Estou nervosa. Estou ansiosa. Estou ansiosa e nervosa, tudo ao mesmo tempo. Sinto-me frenética, exausta e insegura. Quero muito regressar. Mas tenho medo do regresso. 17 caras. 17 rostos. 17 histórias. 17 nacionalidades e línguas também. Estarei à altura? Conseguirei eu ser a transmissora ideal da língua e da cultura do meu país?
Estou nervosa, frenética, ansiosa, exausta. Estou expectante também.
17 jovens. 17 maneiras de ser.17 pessoas. Eu sou apenas uma, mas espero que o amor ao ensino me faça ganhar asas e voar de encontro ao sucesso que será ouvi-los dizer, pela primeira vez: "Olá, professora!" Nesse momento, nesse exacto momento eu serei novamente a jovem idealista que saiu da faculdade um dia, com os livros debaixo do braço, acreditanto que as escolas e os seus alunos seriam a matéria dos seus dias vindouros...
Às 18.00 horas tem início o Curso Intensivo de Língua Portuguesa para alunos Erasmus da UTL. Eu sou uma das docentes contratadas.
P.S. Se o post tiver erros, perdoem-me, mas o meu corpo e o meu cérebro estão a mil e nem sei bem onde!

quarta-feira, setembro 24, 2008

Haverá mulheres mal-amadas?

Mariela Michelena é psicanalista em Madrid e acaba de lançar um livro com o sugestivo título Mujeres Malqueridas, que sustenta a teoria de existirem mulheres capazes em tudo menos na vivência do amor e que, por causa disso, sujeitam-se a amar homens que, em troca, as amam erradamente. Estes homens ou têm compromissos paralelos ou invocam a impossibilidade de se comprometerem. Ainda assim, elas assumem as relações e fidelizam-se nelas, na esperança, diz a autora, de que o cenário mude, um dia. Só que ele, em princípio, não mudará.
Consigo admitir que este tipo de livros, de orientação, possam cumprir objectivos sérios e ajudar muitas pessoas a definir novos caminhos; ao mesmo tempo, assustam-me as generalizações que se possam fazer, especialmente quando no seu enquadramento surge o tópico: mulher/mulheres. Haverá mulheres para todos os gostos, assim como homens. Haverá as que desejam ardentemente casar, as que fogem a isso, as que querem ser mães, as que se recusam, as que investem na carreira profissional, as que investem na família, todavia, sei que a sustentar estas escolhas está o comprazimento que os afectos lhes proporcionam: é que ninguém deseja o vazio que a falta de amor enseja.
Não posso deixar de admitir que as relações estão diferentes, o compromisso tem vindo a tomar rumos atípicos na sociedade actual. Parece-me que tudo ocorre sob o regime da casualidade e da momentaneidade. De repente, somos todos pessoas independentes, modernaças, que gostam de estar sozinhas. Somos uma cambada de assim-assins, que foge da dor como o diabo da cruz. Aliás, a dor passou a ser a peste negra da actualidade. Só por isso vale a pena evitar o amor. As pessoas resguardam-se nos seus territórios esvaziados, evitam expor-se com medo de revelar a sua fraqueza. Choram às escondidas. Ainda assim, é justo falar em mulheres mal-amadas? Haverá mulheres mal-amadas? Ou há apenas as que são e as que nunca foram nem nunca virão a sê-lo? E homens? Há ou não homens mal-amados? Homens incapazes de amar?
Tenho alguma dificuldade, confesso, em aceitar que haja pessoas a amar outras de forma errada. É-me mais confortável acreditar que o amor ou existe ou não existe. Simplifica. Simplifica-me. Além de que a expressão "mal-amada" ou "malquerida"associada a mulheres perturba-me; é que fica no ar a ideia de passividade, de aceitação relutante de sentimentos que as não favorecem. Nenhuma mulher saudável será capaz de prolongar uma situação semelhante. Aliás, a mulher é capaz de tomar a mais difícil das decisões e por mais que goste, quando reconhece que a história se esgotou, não volta atrás. Nem mesmo para inventariar os destroços que ficaram pelo caminho.
"Eu já não posso mais
Olhar nosso jardim
Lá não existem flores
Tudo morreu pra mim
Não posso mais
Olhar nosso jardim
Lá não existem flores
Tudo morreu pra mim...
Mas não faz mal
Depois que a chuva cair
Outro jardim um dia
Há de reflorir!"
Maria Bethânia, As Flores do Jardim da Nossa Casa

terça-feira, setembro 23, 2008

A lógica do amor

Na nossa primeira noite juntos, efectivamente juntos, não consegui dormir (foi no dia 23 de Setembro de 1996 e parece que foi ainda ontem). Fiquei a olhar-te só para garantir-me da tua presença, da tua respiração. Eras tão pequenino, menos as tuas mãos - enormes, fizeram-me imediatamente imaginar o teu futuro: NBA! Cantei para ti, se pode chamar-se aos sons que emitia cantar. A verdade é que a minha voz acalmava-te. Senti que estavas habituado a ela. Havia outra mãe no quarto e o seu bebé, estranhamente, também se acalmava ao ouvir-me cantar. Esse foi o único dia em que percebi que a minha voz continha o amor necessário para soar bonita e ser escutada por alguém.

Foste a pessoa que mais ansiei encontrar, conhecer. E ainda não me desiludiste uma única vez. Tens sido um ser humano excepcional; é com orgulho que digo a todos e a mais alguns que sou tua mãe. E dizer isso, é dizer amor, felicidade, medo, sinceridade, lealdade, verdade, loucura, gargalhadas ou cumplicidade.

A tua voz, o teu riso, o teu olhar trazem-me coisas boas, mesmo quando me deixas profundamente irritada porque sais para o carro sem a mochila da escola ou te esqueces de despejar o autoclismo. Credo, nisso, podias ser um pouco menos igual a mim.

Um abraço teu devolve-me a paz. Um beijo a certeza de que o nosso amor é de toda e para toda a vida. Uma lágrima a violenta descoberta de que a que tu choras é-me mais dolorosa do que a que eu mesma choro. O teu olhar traz-me a doce contemplação de uns olhos que me reconhecem por dentro. E o teu sorriso... meu deus... esse sorriso diz-me que a vida, depois de ti, é maior e mais completa. Quero que cresças dentro da lógica do meu amor. Este amor tão puro e tão teu, que escapa a todas as lógicas do mundo. Disse-to uma vez, não me cansarei de repeti-lo: save the last dance for me!

sexta-feira, setembro 19, 2008

Noite feminina

Gosto das noites que não me exigem quase nada. Em que as conversas me obrigam a que seja apenas eu, sem tiques de sedução ou reflexos de maturidade. Normalmente, essas noites acontecem por acaso, não foi o caso da última.
Combinámos jantar de mulheres, num restaurante de um amigo. Bebericámos vinho e dedilhámos conversas. Ainda que tivéssemos conversas tipicamente femininas, não falámos sobre saias, camisolas, malas ou sapatos; o que prova que a substância do feminino não se resume a isso. Acho que falámos sobretudo de homens - sim, não desenvolvemos qualquer protótipo criativo para conversas de mulheres, nem essa era a nossa intenção - todavia, mais importante do que o assunto, foi a forma como se falou dele. E nós a três falámos dos homens como os homens falam das mulheres: recorrendo à frieza dos nomes próprios. Não houve nem pénis nem vaginas sentados à mesa connosco. Muito menos houve coito interrompido ou sexo oral. O nosso jantar parecia os encontros das grandes amigas de Sexo e a Cidade. Estava lá a Samantha, a Charlotte e a Miranda. A Carrie não pôde comparecer, está, por esta altura, a viver o seu conto de amor duradoiro com o homem que ama, mas senti tanto a sua falta.
De qualquer forma, uma coisa é certa, percebi que apesar de sermos tão diferentes, nos gostos, nas atitudes, nos estilos; queremos todas viver de forma intensa, dizer o que há para dizer, fazer o que tem de ser feito, sem medo, porque, no final, temos a certeza de que mais vale sofrer as consequências da entrega do que sofrer as consequências de não nos entregarmos. E isto faz-me lembrar a música cantada pelo Milton Nascimento, Caçador de Mim. Escutem-na aqui.
Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu, caçador de mim
Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou-me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim
Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito à força, numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura
Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
O que me faz sentir
Eu, caçador de mim

quarta-feira, setembro 17, 2008

Nomes: o meu e o teu comigo

Só queria que tocassem todos os telefones e que a voz do outro lado fosse como todas as outras vozes, excepto numa coisa: no nome. Porque depois do teu nome, os outros que existem são murmúrios imperceptíveis contra a parede fresca do meu coração...

"Onde quer que o encontres
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo – é teu,

para sempre, o meu nome."

Maria do Rosário Pedreira, in Nenhum Nome Depois

terça-feira, setembro 16, 2008

Pela Marginal fora

As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "As Ondas"


Escolhi a marginal, hoje cedo, para fazer a travessia. O dia estava incrivelmente bonito. Talvez estivesse inexplicavelmente bonito. O mar era atravessado por braços de prata vindos do céu, que, múltiplos, se estendiam pela água, atribuíndo-lhe brilhos inenarráveis. O sol aquecia devagar a minha pele, filtrado pelo vidro do carro. O rádio estava sintonizado na Comercial, o Vasco Palmeirim, a Vanda Miranda e o Pedro Ribeiro têm uma energia que me comove, ainda que eu não os ouvisse, pois a minha atenção centrava-se somente na paisagem que me rodeava: a marginal tem um encanto muito próprio, que lhe é proporcionado pelo mar, que a limita.
À medida que avançava, fui reparando na vida que acontecia por ali. Reparei que, àquela hora, já havia pessoas no mar, dentro dos seus barcos. Não sei se à pesca, se em veraneio. Uns poucos aproveitavam para fazer a sua corrida matinal, ao vê-los , invejei-os. Invejei igualmente os pássaros que pareciam estar ali de propósito para tornar o quadro ainda mais especial.
Jamais poderia abandonar a paisagem que o mar me oferece. Mudar de país, sim; mudar de cidade, também, mas sempre, sempre com o mar por perto. Desconfio que é porque o mar tem a capacidade de parecer o mesmo em qualquer parte do mundo, levando-nos a criar a doce ilusão de familiaridade, que nos conforta a alma na distância.

segunda-feira, setembro 15, 2008

Os grandes, os pequenos e a Madonna

Eu sei que prometi falar do concerto da Madonna, mas não me apetece. Hoje não vou falar de nada, sequer. Há dias, como este, em que só quero passar despercebida. Não sinto vontade de provocar conversas de circunstância e muito menos de inventá-las para ocupar silêncios. Tenho os olhos inchados, ainda não parei de abrir a boca e o fim-de-semana esgotou-se depressa demais.
Não houve Like a Virgin, só Like a Prayer. Houve um "obrigada Lisboa" seguido de um "hablan español?" Houve igualmente a certeza de que ser alta é uma característica que me favorece em muitas ocasiões; se fosse baixa, o concerto ter-se-ia reduzido a cabeças de tamanhos diferentes que procuravam vislumbrar uma mulher de 50 anos que, pela forma como se mexe, parece ter 20 e que apetece convidar para uma sessão de sexo a três (sim, como não gosto de mulheres, entre mim e ela teria naturalmente de existir um homem). Houve uma poltrona de rainha, um carro e até uma carruagem de comboio a passar-nos diante dos olhos. Houve um trabalho de iluminação prodigioso e um trabalho gráfico como extensão do que era vivido em palco. Os bailarinos não falharam um único passo, a Madonna também não; ainda que os passos dela fossem os que fazia com os pés/ pernas/ mãos e com a voz - mesmo assim, não houve falhas. Ainda assisti a um pequeno motim. Assim que ela iniciou o espectáculo, houve pessoas (as tais mais baixas do que eu), não contentes com o facto de ouvirem apenas a voz da Diva, a porem-se às cavalitas dos generosos namorados, maridos, pais, irmãos, amigos. Mas isto só até começarem a ouvir vozes (também proferidas por pessoas baixas e, o mais certo, frustradas por não terem namorados, maridos, pais, irmãos ou amigos generosos) que reclamavam contra aqueles seres que, de repente, se agigantaram impedindo ainda mais o vislumbre de um ponto ao longe, segundo acreditavam, a Madonna. Julgo ainda ter ouvido uma série de palavrões e um empurrão violento a um casal encavalitado um no outro. Rapidamente se desfizeram as parcerias constituídas e todos voltaram a ter apenas o seu próprio tamanho. Que não foi suficiente para partilhar do talento sem tamanho da cantora. Não era fã. Não fiquei fã, contudo, se ela quisesse, pensava na tal sessão de sexo partilhada...

sexta-feira, setembro 12, 2008

Madonna e strip

Este fim-de-semana que agora começa vai ser intenso, ou espero eu que o seja. Gosto de sentir que a minha vida não termina quando arrumo a minha secretária e me dirijo para casa. O contrário também não me deixa particularmente feliz: perceber que aquela só começa quando saio do trabalho. Suponho que seja mais agradável acreditar que estou entre uma situação e outra.
Hoje tenho a despedida de solteira de uma "quase" amiga; e no que vai consistir esta despedida? Eu conto. Não será, com certeza, diferente de outras; mas entusiasma-me a ideia de assistir a um strip feminino. Isso mesmo, leram bem: vamos assistir a um strip feminino! Será a minha primeira vez... Não sei o que me espera, talvez nisso resida o meu entusiasmo e ansiedade. Sinceramente ( e digo-o baixinho, para que ninguém nos oiça), espero poder aprender uma série de coisas sobre a arte da sensualidade. Acredito que isso seja possível. E eu adoro aprender sobre tudo e nada. Sei que foi por isso que decidi ser professora. É lá, no ensino, que a apetência pelo saber é mais facilmente alimentada. Por falar nisso, estou mesmo com saudades das salas de aula. Caramba, nasci para ensinar...
No domingo vou ao concerto da Madonna. O Ricardo surpreendeu-me, à última hora, com um bilhete, que me ofereceu. Nestas alturas, como em outras, percebo que a minha vida não foi em vão. É uma sensação fantástica saber que tenho ao meu lado pessoas que gostam genuinamente de mim pelo que sou, seja qual for o meu número de soutien ou o número de buraquinhos de celulite que tenha no rabo.
Depois conto como foi a Madonna. Já o strip só partilharei com quem me apetecer. E eu sei bem quem me apetece.

quinta-feira, setembro 11, 2008

11 de Setembro

Estes dias de final de verão fazem-me pensar em lareiras, em torradas quentinhas e em chá de caramelo. Posso sentir o crepitar vagaroso da lenha queimada, o cheiro do pão a tostar e o vapor da água do chá, que deixa as paredes da cozinha húmidas.

O dia 11 de Setembro acordou tímido, sem saber se sorrir aos raios de sol ou sucumbir à força do cinzentismo das nuvens. Eu acordei tranquila, julgo até que a sorrir. Esta manhã funcionei como um antídoto contra as condições metereológicas, que normalmente definem o nosso estado de espírito; por vezes, mais do que julgamos possível.

Estes dias de final de verão lembram-me o cheiro dos livros por estrear e a ansiedade do regresso à escola. Posso sentir as folhas novas nas minhas mãos e rosto dos colegas, que vinham sempre tão diferentes das férias grandes.

O dia 11 de Setembro (não me apetece falar do outro 11 de Setembro) acordou murcho, como que a dizer que se sente cansado do calor, que deseja a chuva tal como eu desejo um abraço. Mas não um abraço qualquer, quero um abraço despido.

Estes dias de final de verão fazem-me lembrar o mar, as ondas revoltadas contra as enseadas das praias, engolindo a areia e não permitindo a toalha, os chinelos ou corpos deitados.

O dia 11 de Setembro acordou com uma vontade imensa de dizer: "A saudade, meus caros, é a linguagem da ausência." E sábado que não chega...

quarta-feira, setembro 10, 2008

Home alone

O Rodrigo ficou ontem em casa sozinho, pela primeira vez. O que tem isso de especial?, podem perguntar-se. Para mim é óbvia a importância de que se revestiu tal acontecimento. Os filhos devem ser educados para a independência, mas isso tem vindo a mudar substancialmente com os novos tempos. Eu, com a idade dele, já ia da escola para casa (e vice-versa) completamente sozinha, mais, aos 16 anos comecei a trabalhar, uma vez que percebi a dificuldade que os meus pais tinham em sustentar os meus vícios de adolescente, que se resumiam a um ou outro concerto ou a uma ou outra peça de roupa, nada de especial, julgo eu. Só que hoje, somando a legislação e as mentalidades sobre os direitos reconhecidos às crianças, se não prestarmos atenção, educamo-las tendencialmente para a tirania do "eu quero" e para a incapacidade de pensarem sozinhas sobre uma série de coisas.
A verdade é que o meu filho, como a maior parte dos seus amigos, não vai para a escola sem ser acompanhado e não sai da escola se não for exactamente nas mesmas condições. Este condicionalismo pode ter como consequência a dificuldade que ele possa vir a sentir em orientar-se no espaço ou em atravessar a estrada em segurança. O que eu quero dizer é que tem de haver uma política equilibrada na gestão da independência e da segurança/qualidade de vida que desejamos proporcionar aos nossos filhos; se não, teremos, no final do caminho, seres humanos imperfeitos.
A minha mãe estava aflitíssima porque o neto tinha ficado em casa sozinho - com o pequeno-almoço preprado e o almoço pronto a ser aquecido no microondas; ainda com dois filmes do videoclube disponíveis para se entreter, sem mencionar a internet e a bibicleta que o aguardava para dar umas voltinhas e conviver com as babes do bairro -, quando me obrigava a mim, na altura com 9, 10 anos, a comprar batatas na mercearia que ficava uns metros afastada de onde morávamos, à chuva e com os trovões a ribombarem aos meus ouvidos. Eu tremia durante todo o caminho (tenho pânico a trovoadas) mas fui e vim, apesar do medo. Todavia, isso já lá vai e agora ela não tem a função de educar, mas sim a de mimar e proteger, fazendo-me sentir, tantas vezes, como o monstro do Lago Ness, que obriga o "menino" a passar pelas mais estranhas provações: "Tu obriga-lo a fazer a cama e a lavar a loiça?! Coitadinho!" E se eu não estiver atenta, acaba a dizer-lhe: "Deixa estar a cama e a loiça que a avó vai lá tratar disso quando sair do trabalho."
Mesmo eu, estando consciente de que não quero formar um homem que não seja capaz de sobreviver por sua própria conta e risco, independentemente de ter a seu lado quem lhe trate das minudências do dia-a-dia, custa-me igualmente perceber que as exigências que lhe faço significam, mais do que tudo, que ele está a crescer, a tornar-se qualquer outra coisa, a fugir do colinho da mãe. Incomodam-me as portas que vão ficando fechadas atrás dele, demarcando claramente um território que até há pouco tempo também era o meu, mas não é mais. Não é mais... Incomodam-me as mãos que escondem as partes do corpo que antes desnudava sem qualquer preconceito. Incomodam-me porque é como se gritassem aos meus ouvidos: "MÃE, ACORDA, A REALIDADE AGORA É OUTRA." Há, todavia, uma porta que ainda se mantém aberta: a do diálogo. Não há nada de que não possamos falar. Bem, pelo menos, por enquanto...

P.S. Os danos do primeiro dia sozinho não foram assim tão desastrosos: fechou a porta de casa e deixou as chaves lá dentro. Resultado? O dia passado em casa não foi bem passado em casa, foi mais na rua. Tive de sair de uma reunião mais cedo para ir resolver o problema. Tirando isso, e as roupas espalhadas pelo chão da cozinha e do quarto, a loiça estava lavada.

terça-feira, setembro 09, 2008

Texto simples

Sabem como gosto de saborear a vida? Aos gomos, um de cada vez, para sentir na minha boca o gosto de cada momento vivido. Agora, é importante ter a noção de que se um gomo fica pela metade, arrumado a um canto durante anos a fio, e por qualquer razão, alguém se lembra de voltar a provar daquele gomo, ele não se encontrará fresco, nem proporcionará as mesmas sensações de outrora.
É fácil perceber, julgo, que as histórias de amor têm "aquele" momento para serem vividas; não faz sentido querer resgatar a frescura de outros tempos quando sabemos que o tempo não se senta à ombreira da porta a ver-nos passar por ele.
Para mim, é impossível voltar a ser o que fui há anos atrás. Hoje, sou uma outra, com a noção clara do que deseja e ainda mais clara daquilo que não quer para si. E eu não quero comer gomos da minha própria vida, ressequidos com a passagem dos dias. Ou ter acesso a migalhas que alguém deixa pelo caminho. Muito menos quero metades de homens entregues ao que não são e ao que nunca virão a ser.
Eu quero o simples, se o simples não for complicado de ter.

segunda-feira, setembro 08, 2008

Viagens na minha mente

Adormeci devagar; não tinha pressa: consegui transformar os segundos em minutos, os minutos em horas e as horas em eternidade. Adormeci apenas quando o sono se tornou impossível de adiar. Na minha cabeça, como num sonho, havia conversas desmedidas, conversas que começavam com um: " Sou loira, de olhos castanho-esverdeados (...)" e terminavam com: "E sou frágil, quebro com o vento ou de encontro ao vento." Assim que a palavra FRÁGIL ecoou pelo espaço, houve silêncios retraídos e o pressuposto de que a fragilidade é assustadora. Mas não é. A fragilidade é a força dos convictos, dos que acreditam que ao estenderem a mão, as mãos, vão sentir mais facilmente a brisa da vida. Na minha cabeça, as vozes escutavam-se mutuamente, mais do que isso, as vozes procuravam aprender uma com a outra: "São Tomé, Chile e Ásia" "Talvez Brasil, África, Antárctida"; "Bife com arroz de ervilhas, nunca queijo, nem frutos secos (talvez apenas amendoins)"; "Peixe, definitivamente, nunca iscas nem ovos escalfados com ervilhas". E como dentro de um barco que ondula ao sabor das ondas e do vento, e também ao sabor dos peixes que o habitam - há imensos peixes no mar, há uns que se chamam sargos, outros fanecas, outros cavalas e todos eles se pescam com uma cana e um anzol que se oculta com carne de camarão - aquelas vozes empreendiam viagens que não pediam regressos. Quando os olhos de alguém estão tão perto que nos podemos ver ao espelho, quando um hálito quente nos conforta os domingos tristes, não se pensa em regressos só em partidas, regressar cansa tanto e partir traz-nos sempre a vontade do que está por vir.
Viagem
Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho,
e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia-a-dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.
Miguel Torga
P.S. Obrigada, Diogo, pelo poema...

domingo, setembro 07, 2008

Porque o sono não chega!

São 2.13 da manhã. O sono não chega. Deve ser por causa do ritmo adquirido nas últimas noites. Acho que estou triste. Acho que as minhas férias foram insuficientes. Acho igualmente que estou a ter pena de mim própria, e eu odeio isso. Vou ler, afinal, ler acalma-me sempre...

sábado, setembro 06, 2008

Mil Sóis Resplandecentes (e a história de uma carica)


Terminei mais um livro, daqueles que se interpõem quando estamos com a nossa atenção focalizada em um outro. Este livro, exactamente porque me roubou a atenção do primeiro, foi soberbo do princípio ao fim e devolveu-me a certeza de que os livros ensinam, educam e nos fazem empreender as mais ousadas viagens. Com este livro, como se sentada a bordo de um qualquer avião, fui até ao Afeganistão e permaneci lá desde 1964 até Abril de 2003. Assisti, por dentro, à história de um país em permanentes convulsões políticas, que arrastam e modificam todas as outras. Fui Mariam e fui Laila. Fui Tariq e fui Rashid. Fui também um pouco de Aziza e de Zalmai; e fui sobretudo eu mesma, tentando encontrar respostas para perguntas que nem desconfiava ter.

(hoje, depois daqueles segundos em que, estremunhada, faço o reconhecimento rápido do lugar onde acordo, vi-a. estava lá, inerte, atirada como que ao acaso: verde, amachucada, inútil.)

O livro chama-se Mil Sóis Resplandecentes e o seu autor é Khaled Hosseini, autor de um sucesso editorial: O Menino de Cabul (que eu não li). Não sei se foi por o livro contar a história de duas mulheres, ao mesmo tempo que conta a história do país que elas habitam, se foi por passar-se no Afeganistão que eu só descobri ser um país do mundo, após Osama Bin Laden (que nem sequer é afegão), mas a verdade é que o livro me encarcerou e me provocou, em vários momentos, os mais diversos sentimentos. Melhor, transformou-me. E eu gosto quando isso acontece. Sinto que é importante que os livros tenham a capacidade de nos modificar, por mais insignificantes que essas mudanças sejam, ou invisíveis a olho nu.

(só que - se assim não fosse, nem perderia tempo a escrever sobre ela - aquela carica verde, amachucada, inútil tornou-se, de repente, no objecto com mais significado entre os poucos que habitam o meu quarto. estiquei a mão, acaricei-a entre os dedos e decidi guardá-la comigo, fazer dela um impulsionador de memórias - o tempo é inexorável a destruir as memórias que gostaríamos de guardar -, ela devolver-me-á a sensação única do quente, do aconchego dos braços, dos abraços também, das mordidelas doces, do desejo reprimido no silêncio, dias a fio, das palavras que não poderei proferir e do brilho intenso de felicidade escrito nos meus olhos. ela lembrar-me-á igualmente que a vida é um jogo perturbador entre o que revelamos e o que ocultamos ou entre princípios e fins; para este fim, que venham todos os princípios, porque eu, confesso-o, desejo mais caricas verdes, amachucadas, inúteis, perdidas pelos cantos que o meu quarto tem...)

"Laila, minha querida, o único inimigo que um afegão não consegue derrotar é ele próprio." (fala de Babi) Eu pergunto: não é assim com todos nós? Não somos nós mesmos o único inimigo que não conseguimos derrotar?

(vou pegar na minha carica entre as mãos e esquecer o que sinto: que esta carica foi só o princípio de um fim conhecido desde... o princípio.)

quinta-feira, agosto 28, 2008

Saramago e a fila para o café (com ou sem vírgula?!)

Na fila para o pequeno-almoço, hoje cedo, enquanto pensava no meu chá e na minha torrada que estava prestes a degustar; falava-se, atrás de mim, sobre o acordo ortográfico e nas diferenças abissais existentes entre a Língua Portuguesa, falada em Portugal e a falada no Brasil. Como é óbvio, as minhas antenas puseram-se imediatamente à escuta - sim, se as duas senhoras estivessem dedicadas a discursar sobre as suas vidas privadas, os meus ouvidos desligariam automaticamente; se há coisa que me angustia, é ouvir falar sobre a vida de quem não me importa para nada.
Minutos depois - a fila estava extensa nesta manhã de Agosto - a conversa estendeu-se a um outro tema que me interessa igualmente: Saramago. Aproveito desde já para esclarecer que não sou leitora assídua, nem apaixonada, de Saramago. De tudo o que li (poesia incluída), gostei do Ensaio Sobre a Cegueira - que ainda não terminei; o livro está lá, à espera que eu tenha coragem de passar a fase das violações em massa - e mais ainda de O Conto da Ilha Desconhecida. Contudo, há comentários sobre a sua obra que me deixam indignada. Assim que as duas senhoras começaram a discursar sobre a falta de pontuação nos textos de Saramago, apeteceu-me dizer-lhes (mas não disse) que antes de expressarem uma opinião sobre um autor ou livro é obrigatório que cumpram a regra básica: lê-lo. Quem lê Saramago sabe perfeitamente ao que me refiro. Dizer que o autor não usa pontuação - segundo as ditas senhoras porque "tem medo de que ela lhe atrapalhe o pensamento" - é, basicamente, sucumbir ao cliché que adoptaram os seus não-leitores. Só um não-leitor dirá que o autor não usa pontuação. Não vou entrar em pormenores técnicos para não aborrecer-vos, mas quero apenas que atentem num excerto do conto que mencionei em cima:

Contudo, no caso do homem que queria um barco, as coisas não se passaram bem assim. Quando a mulher da limpeza lhe perguntou pela nesga da porta, Que é que tu queres, o homem, em lugar de pedir, como era o costume de todos, um título, uma condecoração, ou simplesmente dinheiro, respondeu, Quero falar ao rei, Já sabes que o rei não pode vir, está na porta dos obséquios, respondeu a mulher, Pois então vai lá dizer-lhe que não saio daqui até que ele venha, pessoalmente, saber o que quero, rematou o homem, e deitou-se ao comprido no limiar, tapando-se com a manta por causa do frio.

José Saramago, O Conto da Ilha Desconhecida
Este excerto exemplifica na perfeição as considerações que farei a seguir. É importante perceber que os autores necessitam, na sua jornada, de encontrar uma voz própria para contar as suas histórias. A literatura de hoje obriga à sustentanção da originalidade. Saramago, depois de dominar as regras dos sinais de pontuação, transmuda-as e adapta-as ao seu estilo pessoal: subvertendo a norma. À semelhança do que faz Mia Couto com as palavras que recria; ou José Luís Peixoto na forma como suspende e retoma as narrativas.
No excerto que escolhi, percebe-se como Saramago potencia o uso da vírgula, ela chega a substituir os dois pontos e o travessão - usados normalmente para introduzir o discurso directo - e até o ponto final. É certo que isto, ao início, pode fazer-nos alguma confusão, pois a leitura não flui como poderia. Todavia, é errado insistir no pressuposto de que o autor não pontua os seus textos; ele fá-lo, isso sim, de forma não convencionada, como se a sua intenção fosse a de aproximar o discurso escrito ao oral.
Eu queria ter dito exactamente isto que agora escrevo às duas senhoras (mas não disse).

quarta-feira, agosto 27, 2008

FALA COMIGO

Por que há momentos em que as palavras, apesar de ardentemente desejadas, não sabem de cor o que deviam dizer; por que há momentos em que a felicidade não é o que procuras, mas é o que acabas por alcançar; por que há momentos em que o silêncio arrasta mais sentidos do que todas as palavras existentes, e as por descobrir também; por que há momentos em que a tua pele sabe à pele de outros; por que há momentos em que o receio (é que ter receio é ter medo em doses menores, disseram-me) se torna menos importante do que tocar nos lábios de alguém; por que há momentos em que partilhar significa rir nas dobras do tempo, ao mesmo tempo; e um pijama branco e velho se transforma, melhor, te transforma numa personagem de contos de fadas; só por isso vale a pena a pena dizer-te: Fala comigo!


Ou então não fales comigo, mas contigo. Ao mesmo tempo, ouve esta música (tens de ouvi-la bem alto) e lembra-te que a vida só se vive uma vez - e é esta!

Brandi Carlile, The Story
All of these lines across my face
Tell you the story of who I am
So many stories of where I've been
And how I got to where I am
But these stories don't mean anything
When you've got no one to tell them to
It's true... I was made for you
I climbed across the mountain tops
Swam all across the ocean blue
I crossed all the lines and I broke all the rules
But baby I broke them all for you
Oh because even when I was flat broke
You made me feel like a million bucks
You do and I was made for you
You see the smile that's on my mouth
It's hiding the words that don't come out
And all of my friends who think that I'm blessed
They don't know my head is a mess
No, they don't know who I really am
And they don't know what I've been through like you do
And I was made for you.
All of these lines across my face
Tell you the story of who I am
So many stories of where I've been
And how I got to where I am
But these stories don't mean anything
When you've got no one to tell them to
It's true... I was made for you
Ohh yea it's true... that I was made for you

terça-feira, agosto 26, 2008

Sisters like no others

http://www.youtube.com/watch?v=_NQobRrZhvo

É engraçado que, dias após ter escrito um texto sobre mim e a minha irmã, por ocasião do seu aniversário, tenha assistido a um filme que retrata precisamente a relação complexa entre duas irmãs. O realizador de Margot at the Wedding (Margot e o Casamento, em português) é Noah Baumbach - realizador de A Lula e a Baleia - e os protagonistas são Nicole Kidman (Margot), Jennifer Jason Leigh (Pauline) e Jack Black (Malcolm). Com este elenco poderoso, talvez não fosse necessário aprofundar demasiado o tema.

Apesar do filme não ser "demolidor", é cru na forma como desfolha a relação caótica, exasperante e, por isso, sincera, de Pauline e Margot.

Podemos ser levados a pensar que as relações sanguíneas bastam para garantir os laços de amor entre as pessoas e que os irmãos se defendem e se amam porque é assim que está estabelecido (só desconheço onde). O que o filme prova, assim como o meu texto, é que as relações entre seres humanos nunca são o que deveriam; muito menos entre irmãos, sobretudo entre mulheres.

O que se passa entre mim e a minha irmã, ou entre Margot e Pauline, é que competimos a toda a hora para provarmos a nossa diferença e no quanto essa diferença nos torna superiores uma à outra. O ódio e o amor na nossa relação, como na delas, coexiste e podemos passar de um ao outro num piscar de olhos.

Margot é escritora. Pauline é "dona de casa". Margot tem um casamento falhado com um escritor falhado. Pauline prepara-se para casar pela segunda vez, o seu noivo é Malcolm, um artista que não ganha dinheiro nem com a música nem com a pintura. Margot é mãe de Claude. Pauline é mãe de Ingrid. Margot diz sempre o que pensa, mesmo que isso fira os outros de morte - a maior vítima da sua verdade é o próprio filho:


Claude: Are you stoned, mom?

Margot: Maybe a little.

Claude: I don't like it.


Pauline é doce, mas insegura. Na relação com a irmã sai sempre a perder:


Pauline: Margot told Claude something I expressly told her in confidence, and he told Ingrid. I'm stunned that she put me in this position. It's so fucking infuriating!

Malcolm: Well, it's one of those things...

Pauline: Don't say anything, OK? You know what, just be there for me, silently.

Malcolm: OK.

Pauline: Why do I have to be so careful around her, but everyone is allowed to make fun of me?


Contudo, no exacto momento em que aquelas duas mulheres ficam vulneráveis às acções dos outros - no filme, Pauline descobre que o noivo se envolveu com uma adolescente (Maisy) e Margot não tem coragem para dizer ao filho que está a pensar deixar o seu pai - apoiam-se no colo uma da outra, até porque, apesar da distância, têm ambas consciência de que ninguém conhece tanto sobre a história de cada uma.

Julgo que é isso que acontece aos irmãos: crescem num ambiente que os envolve mutuamente, mesmo que o percepcionem segundo a sua própria sensibilidade. É nas memórias partilhadas que reside aquela amizade ininterrupta e indestrutível.


Jamais me esquecerei de um dia em que estávamos a almoçar - eu, a minha irmã e o meu pai - e fomos visitados por um amigo do meu pai que tinha um tique de linguagem, a cada conjunto de palavras ditas, ele introduzia "tás a ver":

Amigo: Ó Carlos, tás a ver, vais lá ver aquilo, tás a ver, diz-me depois o que achas, tás a ver, e conversamos, tás a ver(...)


Após alguns minutos nisto, tanto eu como a minha irmã estávamos prestes a rebentar em gargalhadas, era só ouvirmos mais um "tás a ver" dito espontaneamente. O meu pai começou a aperceber-se da nossa agitação e olhou-nos como só ele sabe. Isso bastou-me para perceber que irromper numa gragalhada sonora não era aconselhável, não naquele contexto; porém, para a minha irmã (mais rebelde e mais nova), aquele olhar não a colocou de sobreaviso, por isso, pouco tempo depois, levantou-se e foi dar as gargalhadas dela para a marquise, anexa à cozinha. Aí entrei em pânico, não só continuava a ouvir aqueles "tás a ver" ditos de minuto a minuto, como passei a estar exposta às suas gargalhadas (que me aumentava ainda mais a necessidade de rir), enquanto o meu pai mantia a pose, à mesa, e olhava para mim à espera de respostas.

Ainda hoje conseguimos as duas rir daquele dia; mais, conseguimos rir como naquele dia...

Pauline: It's hard, I think, to find people in the world you love more than your family.

segunda-feira, agosto 25, 2008

Se eu pudesse

O que fazer quando nos apetece deixar a boa educação de lado e gritar na cara de alguém o quanto a desprezamos?

Tenho o grito preparado, a entoação e o tom correctos e, mais uma vez, terei de engoli-lo, o mais certo é mastigá-lo, para não correr o risco de morrer engasgada.

Um dia quebrarei as minhas próprias regras e descerei àquele nível que a minha personalidade conciliadora ignora - é que às vezes é preciso descer um nível abaixo, para subir uns acima.

Ahhhhhhhhhhhhhhh, se eu pudesse!!!!

P.S. Este texto foi objecto de uma autocensura, é por isso que só eu o compreendo. Todavia, acreditem que escrevê-lo deu-me a capacidade para calar o grito ansiado por mais uns tempos...